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Papo de Cinema

MARIGHELLA | O Filme Que Não Se Sabe Se Será Visto

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Conforme trabalhamos de forma “en passant” em nossa crítica do filme Vai Que Cola 2, o cinema brasileiro sempre enfrentou percalços para se estabelecer concretamente como uma indústria – para pegar emprestada a terminologia de Hollywood – altamente lucrativa e absolutamente independente e privada.

É preciso entender que cada modelo de financiamento de produção cinematográfica tem seus pontos positivos e negativos.

Desse modo, filmes totalmente financiados pela iniciativa privada (dos quais os EUA são o melhor exemplo) gozam, positivamente, do fato de não dependerem da burocracia estatal para serem realizados, não se submetendo, também, a nenhum tipo de “filtro” – seja ele ideológico ou burocrático – para chegar às de cinema. Contudo, a exigência de gerar lucro aos investidores confere, naturalmente, aos “donos do dinheiro” um enorme controle sobre o “produto final”, o que faz com que, na média, surjam obras refinadíssimas do ponto de vista estético e técnico, mas muitas vezes “formulaicas”, enquadradas numa “forma” de sucesso, o “padrão hollywoodiano” ou “modelo blockbuster”. Essa, aliás, é a maior crítica que é feita aos “filmes da Marvel”, os quais, mesmo contando com muitos diretores diferentes conferindo toque pessoal às suas obras, sempre apresentam um tom similar. Em termos da influência dos investidores sobre a obra artística, Blade Runner (1982) talvez seja um dos mais emblemáticos exemplos, haja vista a enorme quantidade de versões (do ‘estúdio’, do ‘diretor’, do ‘corte final’ etc.) que já foram lançadas do famoso cult movie. Mais recentemente, Liga da Justiça (2017, Warner, direção de Zack Snyder “e” Joss Whedon) se tornou outro exemplar de filme que foi altamente modificado em razão do temor do estúdio de que o produto que se previa lançar não fosse dar o retorno esperado (o que mostra que nem sempre o “dinheiro” tem razão!).

(Nota: os estados e municípios norte-americanos podem ofertar incentivo fiscal para a realização de filmes em seus territórios. Não se trata de uma “Lei” única de fomento, pois, o mercado cinematográfico norte-americano prescinde de incentivo. Mas é comum haver “guerra fiscal” entre os estados para que certos filmes sejam realizados naquele lugar. O Canadá costuma ser bastante utilizado para gravações de locações de cenas que se passam nos EUA, graças aos descontos fiscais que costuma oferecer para as produtoras. Fonte: https://filmenomundo.wordpress.com/2014/02/14/financiando-cinema-nos-eua/)

Foto: Divulgação

Apenas em ditaduras (seja de esquerda ou de direita) existe a condição de filmes 100% financiados pelo Estado. Obviamente, quase não há pontos positivos a serem ressaltados a não ser do ponto de vista técnico (fotografia, cenografia, figurino, direção de atores, domínio de câmera etc.), haja vista que, em termos de conteúdo, tais obras cinematográficas obviamente servirão apenas para propagandear o governo que as bancam. Os filmes realizados pela UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft) no período da Alemanha Nazista, e os produzidos pelo cinema soviético da URSS, de 1917 até o fim da União Soviética – claramente instrumentalizados pelo e para o governo –, são os exemplos mais claros desse modelo. Por incrível que pareça, um ou outro desses filmes, apesar de todo o rígido controle estatal ideológico, conseguia extrapolar as amarras impostas e se destacar como obra de real valor artístico. Mas são poucos. No geral, representam produtos alienantes por natureza. Atualmente, pode-se citar o Oriente Médio e Chinês como exemplo de cinema financiado pelo Estado e que, por conseguinte, precisam estar de alguma forma a favor do regime político-ideológico. (cabendo uma nota, entretanto, para o cinema iraniano, que tem conseguido produzir alguns longas realmente “fora da caixinha”).

Foto: Divulgação

Tem-se, ainda, o modelo do cinema independente, que se caracteriza por ser totalmente financiado pelos próprios realizadores e/ou por meio da captação direta obtida junto a investidores que acreditam e se arriscam no potencial artístico e mercadológico daquela obra cinematográfica. Talvez esse fosse o modelo ideal, mas é preciso reconhecer que, devido à sua inerente limitação financeira, sua possibilidade de realização e seu alcance seriam bastante limitados, ou alguém consegue imaginar Vingadores: Guerra Infinita sendo produzido de forma independente, com o realizador batendo de porta em porta para vender sua megalômana ideia e captar recursos? (lembram-se de O Quarteto Fantástico, de Roger Corman, de 1994?). Nos EUA, tais filmes ganham a conotação de “indies”, sendo que alguns ganharam notoriedade incrível, caso de Sem Destino, A Bruxa de Blair, Cães de Aluguel, Encontros e Desencontros, Pequena Miss Sunshine etc. A evolução e disseminação tecnológica também têm propiciado a que obras independentes sejam feitas com uma alta qualidade técnica, revelando diretores talentosíssimos, como, por exemplo, Gareth Edwards, que de um filme “feito em casa”Monsters (2010) – foi cooptado a dirigir blockbusters do porte de Godzilla (2014) e Rogue One: A Star Wars Story (2016). O positivo é que tais obras são, no geral, verdadeiramente artísticas, mas ao mesmo tempo potencialmente lucrativas.

Foto: Divulgação

Por fim, há o modelo de financiamento cinematográfico que é predominantemente utilizado no Brasil, o qual se apoia no chamado fomento. Nesse tipo cinematográfico, o governo busca promover o cinema – a princípio incapaz de se autossustentar – por entender sua importância enquanto destacado fenômeno cultural e econômico. Dessa forma, o Estado intermedeia o financiamento por meio de renúncias fiscais e/ou patrocina diretamente a produção dos filmes, desde que se enquadrem em certos limites pré-estabelecidos, que vão desde critérios mais objetivos – ter um rígido cronograma cronológico-financeiro ou, em termos artísticio, não ser uma obra pornográfica (de sexo explícito) – a mais subjetivos – como relevância cultural. Os pontos positivos se centram numa garantia difusa de que o país terá uma produção cinematográfica regular, tematicamente diversificada, variada, artisticamente relevante, culturalmente engajada (isto é, apoiada na sua realidade sociocultural) etc. Os investidores injetam dinheiro em obras que possuam um “selo de qualidade” governamental e, em contrapartida, obtêm certos benefícios fiscais e publicidade. Negativamente – novamente o caso do Brasil – muitas dessas obras acabam possuindo uma característica muito autoral, demasiadamente artística, sem nenhum real compromisso mercadológico ou qualquer preocupação maior de gerarem lucro, haja vista já estarem pagas, caso tenham sido bem planejadas e executadas conforme tal planejamento. Com isso, tornam-se, basicamente, filmes de festival, sem apelo junto ao grande público. Filmes como Central do Brasil, Cidade de Deus e Tropa de Elite, entre outros, são exemplos de obras cinematográficas nacionais que conseguiram unir tanto características artísticas fortes quanto uma visão de mercado abrangente, no sentido de estarem firmemente fincadas no âmbito sociocultural do país, mas sem abrir mão de certas características do “cinemão” hollywoodiano, de forma a “agradar gregos e troianos”.

Foto: Divulgação

Tudo isso nos leva ao recentíssimo caso do filme Marighella, estrelado por Seu Jorge no papel título e que representa a estreia de Wagner Moura na direção de seu primeiro longa.

Foi amplamente reportado, nesta semana, que o premiado filme – que conta a história do guerrilheiro baiano e comunista Carlos Marighella (considerado pelo governo ditatorial militar de 1964 a 1985 como o “inimigo número” um do regime), morto em 1969, numa intricada emboscada do governo – não vai conseguir estrear na data planejada (20 de novembro de 2019).

O caso obteve ampla repercussão.

Wagner Moura é um opositor declarado do atual governo de Jair Messias Bolsonaro.

A cinebiografia retrata, de forma heroica, a vida de um guerrilheiro comunista, autor de ensaios nesse sentido (inclusive escrito em Cuba) e inimigo confesso do regime militar.

O Presidente da República já deu diversas declarações e promoveu diversas ações que denotam sua insatisfação pessoal-ideológica com os rumos e critérios adotados pela Ancine, órgão regulamentador responsável pelo fomento cultural do país, e pelo FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), além de denotar uma visão diferente e altamente simpática pelo que ele chama de “revolução democrática” de 1964 (ao invés de “golpe militar”) e o consequente governo respectivo.

A soma desses fatores redundou num enorme reboliço nas redes sociais e mídia tradicional, no sentido de o cancelamento da data de lançamento do filme (20 de novembro: “dia da consciência negra”), ser, na verdade, um ato de censura ao filme de Moura.

Acontece, ao que tudo indica, que o que ocorreu de fato foi um problema tecnocrático entre a O2 (produtora do filme) e a Ancine, no sentido desta não ter liberado os recursos devidos ao lançamento do filme na data aprazada, uma vez que aquela não formalizou junto ao órgão regulamentador a data de estreia prevista para o filme dentro do prazo regimental de 90 dias de antecedência. Apesar do recurso administrativo interno da O2, a Ancine mais uma vez negou a excepcionalidade solicitada, em razão de uma reincidência de problemas da O2 no cumprimento de certas cláusulas contratuais entre as proponentes.

Foto: Divulgação

Desse modo, a O2 não divulgou nova data para a estreia nacional do longa, talvez – que sabe? – por estar tentando liberar tais recursos por meio da captação direta. Enquanto isso, fica o suspense sobre “se” e “quando” o filme ganhará as salas de cinema do país.

Infelizmente, a suspeita de que o filme estaria sob censura disfarçada de burocracia – ainda que se tenha mostrado, a princípio, que tal desconfiança, no caso, era improcedente – faz total sentido nestes tempos de extrema polarização social, além da postura altamente questionável do governo com relação à produção cultural em geral do país.

Críticas ácidas ao carnaval, a certos tipos de filmes e música, à Lei Rouanet, entre outras declarações e medidas adotadas pelos atuais governantes só fortalecem o sentimento de que, a qualquer hora, a suspeita possa se tornar uma dura realidade.

A cultura é fundamental para a formação ética, intelectual, sociológica e antropológica de um povo, além de, objetivamente – e principalmente no tocante ao cinema – movimentar a economia, gerar empregos diretos e indiretos (basta ler os créditos dos filmes para ver quantas pessoas são envolvidas no processo de filmagem), compras, locações etc. E a arte dela oriunda não pode ser ideologicamente enjaulada.

Argumentos e ideologias são demonstrados e refutados pelos fatos.

À cultura e à arte cabe o papel de refletirem a mentalidade, o gosto, a inclinação e a características de um tempo específico, às vezes por meio do lirismo absoluto, outras vezes pela crítica mordaz.

Qualquer tentativa de cerceamento ou controle – por mais leve que sejam – só podem ganhar a pecha de lamentáveis.

O cinema brasileiro ainda precisa (e talvez precise por muito tempo) de incentivo para sobreviver e florescer rumo a uma independência estatal.

Até lá, que os governantes se sensibilizem quanto a necessidade de sua manutenção, além de pela indispensável liberdade criativa que deve permear tal produção cultural.

Não pelo viés ideológico que certamente o filme possa ter, Marighella tem o direito de ver o sol…

Foto: Divulgação

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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