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Papo de Cinema

A VIDA IMITA A ARTE? | Exemplo de filmes, séries e livros que provocam reflexões críticas sobre os tempos atuais

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ATENÇÃO: ESTE ARTIGO VAI MENCIONAR FATOS VERÍDICOS E FICTÍCIOS QUE ENVOLVEM “ESTUPRO”, “VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER” E “ASSÉDIO”.

 

“Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte”

(Nietzsche, em “O nascimento da tragédia no espírito da música”)

 

A bela e jovem loira de olhos azuis translúcidos se assenta na mesa do bar com uma amiga, trajando uma sexy minissaia jeans e camiseta de alça – sem sutiã – sob a jaqueta de couro logo descartada. Ela pede cerveja, acende um baseado e começa a flertar com atraente homem de outra mesa. Eles jogam fliperama juntos, põem uma música no jukebox, e ela começa a dançar sensualmente, a princípio sozinha e depois acompanhada de sua paquera. O casal começa a trocar beijos ardentes, enquanto o homem, no ritmo da música, vai conduzindo lentamente sua parceira para a região dos fliperamas, onde a joga sobre uma máquina de pinball e, com o auxílio de mais outros homens – que a seguram pelos braços e cabeça – a estupra violentamente, juntamente com mais dois frequentadores do bar, sob os aplausos e vibrações de animados espectadores.

A descrição acima se refere à chocante cena de estupro coletivo do filme Acusados, no distante ano de 1988, dirigido por Jonathan Kaplan, e estrelado pela bela Kelly McGillis e a inquestionavelmente talentosíssima Jodie Foster, em performance que lhe garantiu sua primeira estatueta dourada. Mas, infelizmente, esse antigo longa guarda impressionantes paralelos com a mentalidade machista ainda em voga, que se mostrou patente no recentíssimo episódio jurídico real envolvendo a influenciadora digital Mariana Ferrer, que acusou o empresário André de Camargo Aranha de tê-la violentado, há dois anos, em festa ocorrida num famoso beach club de Florianópolis, aproveitando-se de sua incapacidade momentânea, em razão de alguma substância que teria bebido e a entorpecido.

Foto: Divulgação

Trata-se de uma jovem mulher extremamente bonita, vestida de forma apropriada para a ocasião, atuando como promoter numa festa cercada de “machos-alfa”, regada a muita bebida, música alta, glamour – certamente “um pouco” de droga – e profissionalmente aconselhada a não ser grosseira com os yuppies brasileiros endinheirados que ali estariam. Num certo momento da festividade, as câmeras de segurança mostram a jovem – cambaleante – sendo conduzida pelo citado empresário a um reservado, de onde sai minutos depois, ligando para algumas amigas em prantos e pedindo um carro por aplicativo, que a leva, visivelmente alterada, para casa, onde chega com a roupa suja e “cheirando” a esperma (descrição de sua mãe).

O julgamento – transcorrido em segredo de justiça – redundou na absolvição de André de Camargo Aranha, a pedido da própria acusação – comandada pelo Ministério Público – sob a alegação de que o empresário não tinha como saber que Mariana não estava em condições de consentir na relação sexual – que ele primeiramente negou haver – e, portanto, que não se caracterizou a intenção (dolo) de estuprar. Em outras palavras, houve um estupro sem querer!!!!

As redes sociais bombaram desde então, com a hashtag “#estuproculpso”, recebendo apoio de diversas e numerosas figuras públicas.

Em termos técnico-jurídicos – se me permitem o aparte advindo de minha formação profissional – a inconclusão dos exames periciais sobre a presença de substâncias entorpecentes lícitas ou ilícitas no sangue de Mariana foi o fundamento que mais pesou para o pedido de absolvição sob a tese aventada. Sem se conseguir comprovar que a vítima estava sob efeito de algo que lhe tirasse o completo discernimento, torna-se difícil provar o estupro de vulnerável do art. 217-A do Código Penal*, não subsistindo, porém, o tipo penal do “estupro culposo” no ordenamento jurídico brasileiro.

*Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Foto: Divulgação

Entretanto, ainda no Âmbito técnico, se, do ponto de vista jurídico-material (tipo penal da lei) não foi possível configurar com certeza o crime, em termos processuais, fica claro o abuso perpetrado pelo advogado de defesa do acusado, que se utilizou das antigas fotos sensuais como modelo da influencer para desmoralizá-la perante o Juízo, além de ofendê-la, chamando-a indiretamente de mentirosa e falsa (ao criticar o “choro dissimulado” e “lábia de crocodilo” da moça) e de “aproveitadora” (quando diz que ela seria especialista em explorar essas circunstâncias para conseguir mais seguidores nas redes). A cereja do bolo veio com a afirmação de que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana.

Esse julgamento evoca muitas coisas, que não devem ser objeto de uma reflexão postada em site de cultura. Mas, da mesma forma que a personagem Sarah Tobias de Jodie Foster no filme acima citado foi praticamente ‘julgada’ pelo seu comportamento antes do estupro – bebeu, fumou, chapou-se, dançou, vestiu-se de forma “inapropriada”, flertou e encorajou as carícias de um dos estupradores – como se isso pudesse servir de justificativa para a violência daqueles homens, Mariana Ferrer também passou a ter que se defender no julgamento onde, até então, ela era a vítima! O advogado de defesa – Dr. Cláudio Gastão – ao invés de defender seu cliente, passou a atacar a acusadora, como se a antiga profissão de modelo e a atual de influenciadora de Mariana fosse algo que explicasse a postura macho-agressiva do homem.

O que esse machismo estrutural da sociedade não compreende (ou não quer compreender) é que nada justifica a violência física ou sexual de um homem contra uma mulher. A vida ou postura sensual e/ou sexual dela não é e nunca será um permissivo para o estupro.

Caso muito similar a isso foi retratado na minissérie Inacreditável, da Netflix, na qual uma jovem é acusada de fazer falsas acusações de estupro, passando de vítima a ré, numa absurda inversão – que acabou na condenação dela de pagar 500 dólares num acordo para não ser presa! – baseada em achismos, preconceitos, sexismos, misoginia e puro e simples machismo. A série é estrelada pela subestimada jovem atriz Kaitlyn Dever, no papel principal de Marie Adler, e subsidiada pelas competentíssimas Merritt Wever e Toni Collette, na pele das detetives Karen e Grace, que reabrem o caso e descobrem a enorme injustiça de que a moça havia sido vítima. O mais chocante? Tirando alguns poucos detalhes, a história contada na minissérie é total e chocantemente real. O que só prova como há, na realidade, uma mentalidade ideológica por detrás de casos como esses, capazes de jogarem a responsabilidade da violência sofrida na própria vítima (a história, também recente, envolvendo famoso jogador de futebol condenado na Itália por participar de outro estupro coletivo contra uma jovem albanesa não é mera coincidência).

Foto: Divulgação

Voltando nova e brevemente ao caso de Mariana Ferrer, não havendo dúvidas quanto à ocorrência do ato sexual – há material genético e exame pericial comprovando a perda da virgindade da influenciadora naquela ocasião – a questão é se ela e o empresário mantiveram relação sexual consentida ou não; se ela tinha condições reais de assentir com a conjugação. Mesmo que ela tivesse “apenas” um pouco bêbada, o quanto isso seria suficiente – no caso dela – para lhe tirar o completo discernimento?

No filme Lucia e o Sexo – que revelou para o mundo a deslumbrante Paz Vega (Espanglês) – a personagem principal, obviamente Lucia, é loucamente apaixonada pelo escritor Lorenzo (Tristán Ulloa). Numa noitada, ela se aproxima dele, se declara, o seduz e, após beber álcool aos litros, deixa-se levar para a casa de sua paixão. Uma vez lá, iniciam-se as trocas de carícias e a retirada de roupa, mas, ao reparar o nível de embriaguez de Lucia, mesmo tendo a sinalização positiva dela, Lorenzo prefere simplesmente cobri-la e adormecerem. Na manhã seguinte, completamente recuperada, a bela mulher se levanta e, completamente nua, explora a casa do objeto de seu desejo, bebe água, faz o desjejum, toma banho e, aí sim, acorda seu amado para dias de aventuras sexuais, com direito a picantes fotos em Polaroide. Tudo completamente consentido e consciente.

Ao ver que Lucia, mesmo o tendo seduzido a noite toda e praticamente se jogado nos braços dele, estava visivelmente entorpecida pela bebedeira, Lorenzo optou por verdadeiramente protegê-la (para usar uma das mais utilizadas desculpas do machismo para justificar a posse do corpo da mulher pelo homem), agindo não como o machão com relação à indefesa donzela, mas como um ser humano cuidando do outro, para tê-lo por inteiro na melhor oportunidade e devidamente consciente.

Foto: Divulgação

Estes e muitos outras obras audiovisuais mostram o quanto a arte pode servir de importante reflexão para assuntos de suma relevância para a sociedade contemporânea. Para além de políticos e religiosos – capazes de insistirem na gravidez de uma menina de 10 anos, que vinha sendo violentada há anos pelo tio – e de ideologias estranhas – que chegam a apregoar que a mulher “gosta” e “tem o direito” de ser assediada, uma vez que isso “massageia o ego” delas – é a arte – e sua multifacetada capacidade de contar histórias de múltiplas formas – que continua detendo o poder de enxergar longe (livros 1984, Admirável Mundo Novo, filmes como Ela, e Gattaca);  de não deixar a memória se apagar (A Lista de Schindler, Platoon, Os 7 de Chicago, entre outros) e de criticar o presente (a série Pose, a animação Frozen, os filmes Tropa de Elite, O Poço e Borat 2 etc.).

Não à toa, a arte e a cultura são as primeiras manifestações a sofrerem coibição em regimes menos democráticos!

Tomara que, um dia, o ser humano consiga sair da reflexão e partir para a ação, naturalizando o tratamento verdadeiramente igualitário à mulher, ao negro, ao gay e à diferença em si.

Aproveitem e deem dicas, nos comentários, sobre outros filmes, séries, livros e HQs que vocês lembrem que falem e abordem assuntos como esse.

Tchau!!!!

 

PS.: um agradecimento especial para a nossa colunista Natália, que ajudou muito na elaboração dessa matéria!

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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