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Críticas

8 EM ISTAMBUL | Crítica do Neófito (Escondido na Netflix)

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Se você é daquelas pessoas que gostam de assistir ou maratonar séries cheias de efeitos especiais, envolvendo ação desenfreada, tiros, super-heróis (ou ao menos superpoderes), altas doses de terror (físico ou psicológico), quem sabe romance arrebatador, muita comédia ou, ainda, tramas extremamente elaboradas, argumentos de dar nó na cabeça, tudo embalado em uma produção para lá de caprichada, com estrelas hollywoodianas e recursos narrativos de ponta, bom, a série que vamos apresentar nessa matéria definitivamente não é para você!

Mas se você gosta de aprender com culturas diferentes da sua, conhecer como países menos acessíveis ao público em geral lidam com suas questões históricas políticas e sociológicas, no sentido em como isso vai afetar a vida das pessoas – sobre as quais, muitas vezes, alimentamos boa dose de preconceito –; se você aprecia histórias pessoais, quase íntimas, sobre pessoas absolutamente comuns, apresentadas de forma certinha, mas sem firulas narrativas, sem maiores recursos – até mesmo com toques de breguice – então, 8 Em Istambul, série de 2020, produzida pela Netflix é, com muita certeza, uma série que vai ganhar o seu coração.

Como o título em português anuncia, trata-se de série televisiva de origem turca, retratando a história de pessoas turcas, envoltas com questões da cultura turca, falada em turco, filmada com carinho e competência, mas evidentemente com poucos recursos. Na verdade, a limitação do título em torno de 8 pessoas é questionável e arbitrária, pois, ao longo dos 8 capítulos da série, alguns outros personagens, além de oito, acabam por merecer a atenção do público.

O título em turco –  Bir Başkadir – segundo o Google, é expressão idiomática que significa a pessoa única, em sentido positivo, ou seja, em termos da singularidade que cada um – com suas virtudes e defeitos – tem e possui para a própria vida e para a do próximo.

Foto: Divulgação (uma imagem vale por mil palavras: a simples tomada mostra a alma da personagem)

E, desse modo, logo nos primeiros minutos da projeção da série, somos apresentados a Meryem (a bela Öykü Karayel) – a alma da produção – na figura da mulçumana tradicional, sempre trajando o “hijab” (vestimenta típica da mulher mulçumana, incluindo o lenço na cabeça em ambientes públicos), caminhando longa distância da periferia de sua casa até luxuoso prédio de apartamentos residenciais no centro de Istambul, onde, todas as quartas-feiras, trabalha como diarista na casa do hedonista Sinan (Alican Yücesoy). Após trocar os calçados de rua pelos de andar dentro de casa, Meryem para na cozinha e, ao ver alguma coisa indefinida, simplesmente desmaia.

Um corte brusco nos remete ao consultório psicológico da sisuda Peri (Defne Kayalar) – psicoterapeuta formada na Europa – um ano antes dos acontecimentos acima narrados, no qual a mesma Meryem está sentada, calada e olhando para o nada, até começar a falar trivialidades. Fica nítido que ela está ali contra a vontade, uma vez que a medicina “tradicional” não conseguiu descobrir a causa de seus recentes desmaios, indicando a necessidade de uma psicoterapia. O choque cultural é evidente: Peri é europeizada, muito culta, veste-se de forma elegante e moderna, mantém os cabelos expostos (o que tem grande significado) e faz supervisão com a moderna e sexualmente ativa Gülbin (Tülin Özen); enquanto Meryem é simplória, religiosa, “machista”, sem muita educação formal, voltada apenas para a família.

Foto: Divulgação (a “poderosa” Peri)

Família, esta, que passa por momentos difíceis, haja vista a depressão profunda e suicida de Rhuiye (Funda Eryigit, versão turca da Monica Bellucci), casada com o típico macho-alfa turco Yasin (Fatih Artman, fabuloso), com quem tem um casal de filhos, cujo menino mais novo se recusa a falar.

Quem aconselha a família é o Hodja (ou Coja) Ali Sadi Hoca (Settar Tanrıöğen), o paciente e sábio líder espiritual sufista da comunidade local (espécie de mulçumano místico), marido da experiente Mesude (Gülçin Kültür Şahin) e pai de Hayrünisa (Bige Önal), a qual, apesar de também seguir a “hijab”, gosta, secretamente, de ouvir música norte-americana e de frequentar boates junto à “amiga” Burcu (Esme Madra).

Foto: Divulgação (o “Hodja” e sua filha)

Todos os personagens são pessoas absolutamente normais dentro da cultura e sociedade turcas, fortemente marcadas pelo islão, religião de praticamente 90% da população, em contexto político controverso e multinfluencial (fronteira com a Bulgária europeia, com a guerra da Síria, com a sofisticada Geórgia), caracterizado por violações aos direitos humanos (contra gays, mulheres e etnias minoritárias) e restrições ao livre pensamento (regras para programas de tv – como a obrigação de pelo menos uma mulher ter que usar o hijabe – prisão de políticos de oposição e integrantes da imprensa).

Ainda assim é fascinante o retrato que a série apresenta de todos os espinhosos temas acima delineados a partir dos dilemas prosaicos de pessoas ordinárias. Desse modo, a dificuldade de Peri em tratar de Meryem – uma “mulher de véu” – escancara a dor das mulheres turcas, divididas entre os apelos do corpo, o conhecimento científico e a fé genuína, algo que se repete no drama de Rhuiye, cujo passado pouco resolvido pesa enormemente sobre seus frágeis ombros, enquanto o marido Yasin não compreende como a poderia ajudar. Aliás, a agressividade constante dele – misturada com altas doses de misoginia, religiosamente alicerçada – é a única forma que encontra para expressar a frustração de não ter a mínima ideia de como amparar sua mulher, tornando-o um dos personagens masculinos mais bem construídos da televisão dos últimos tempos. Sua figura desperta raiva, mas profunda empatia em igual medida! Brilhante trabalho de direção e atuação.

Foto: Divulgação (o casal Yasin e Rhuiye numa conversa tensa e emotiva sobre os problemas dela)

Os temas da religião, da fé, do luto, da sexualidade, do sucesso material, da repressão individual (seja cultural ou sexual) estão todos presentes, sem bandeiras ou planfetarismos, tratados com sutileza e respeito. Algumas coisas, porém – como a quase evidente homossexualidade de certa personagem – claramente precisaram ser minimizadas ou deixadas em modo oculto, afinal, a série se mostra ousada em muitos aspectos (até com breve nudez feminina), mas não daria, pelo contexto de seu berço cultural, ir mais longe em algumas temáticas.

Qualquer coisa a mais que se fale da trama pode estragar as pequenas – mas deliciosas – surpresas e reviravoltas do roteiro. Todavia, pode-se dizer que a história individual dos diversos personagens acabam por se entrelaçar, formando uma rede de relacionamentos bastante complexa e simbólica para a sociedade como um todo, factualmente constituída das inúmeras relações entre pessoas, que muitas vezes nem fazem ideia de como suas questões pessoais estão ligadas com as outras ao seu redor.

Mas há episódios – como o quinto – que tornam a série quase excepcional. A dor que certos personagens expressam é simplesmente tocante e tão universal, que, realmente, dá para entender o significado da frase o universo numa casca de nós (título de famoso livro de Stephen Hawking). No drama individual se revela algo esplendidamente universalista. Não à toa, um dos personagens mais pitorescos da série – interesse romântico de Meryem, interpretado por Gökhan Yikilkan – é entusiasta de Jung, sempre explicando para as pessoas as teorias do psicoterapeuta suíço, ex-discípulo de Freud e criador da teoria do inconsciente coletivo. Se Peri e Gülbin tratam do indivíduo turco, com base nos princípios freudianos, a sociedade turca só poderia ser entendida por meio dos pressupostos junguianos.

Tudo isso é embalado por uma estética simples, econômica e naturalista que lembra, em alguma medida, o modelo dos filmes nacionais brasileiros da década de 1970, mas com bom gosto e diversos elementos contemporâneos, que quebram com expectativas preconcebidas mais fortes. Músicas típicas da Turquia formam a trilha sonora, cuja sonoridade, aos ouvidos mais sofisticados, pode soar brega (aliás, vários episódios terminam com pedaços de shows de certa celebridade musical turca que, apesar de cantar na língua e na rítmica da música tradicional do país, mistura essa base com elementos do pop mundial, o que também vale como retrato da dicotomia e – ao mesmo tempo – riqueza da cultura da Turquia).

Outros símbolos da dualidade passado x presente surgem aqui e acolá, como quando Rhuiye precisa confrontar seus traumas pessoais passados, justamente em meio aos destroços dos templos do antigo Império Otomano, que ali vigorou do século XIII ao XX. Situações que, no Ocidente, já são encaradas com grande naturalidade (respeitadas as evidentes variações socioculturais), na Turquia ainda representam marcos profundos na alma de seus cidadãos.

8 Em Istambul é típica obra escondida na plataforma de streaming que merecia ganhar mais holofotes e ser assistida por mais gente. É mais lenta do que os programas “padrão” da televisão, mesmo assim está a quilômetros de ser chata. Em verdade, ela é necessária. É preciso enxergar de verdade outras culturas, principalmente a islâmica, objeto de tantos preconceitos, graças aos grupos radicais que emergiram e emergem – vez ou outra – de seu interior, baseados em interpretações extremadas do Corão. Importante ver que, “lá”, as pessoas são tão “normais” como as do Ocidente, apenas buscando serem felizes na medida do possível, dentro do ramerrão de incidentes e conflitos que a vida traz. Se isso é obra de Deus, de Alá, de Krishna ou do homem, é questão de crença pessoal.

Mas que a vida de cada ser humano é universalmente especial em si mesma, isso é!

Foto: Divulgação

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Nota: 4 / 5 (ótimo)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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