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Críticas

MERLÍ | Crítica (tardia) do Neófito

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Na transição do verão para o outono espanhol de 2015, que ocorre em setembro, a TV3 – a rede de maior audiência na Catalunha, que transmite sua programação exclusivamente em catalão, algo muito significativo e político para a região que há séculos luta por sua independência – estreou uma série televisiva que tinha uma premissa no mínimo inusitada.

Tratava-se de Merlí, focada na vida e personalidade pouco convencionais de um professor de Filosofia do ensino médio público em Barcelona, que foi ao ar, com grande sucesso de público e crítica, em 3 temporadas, compreendidas de setembro 2015 a janeiro de 2018.

Foto: Divulgação

O acima citado caráter “inusitado” da premissa é que cada capítulo da série tinha o pensamento de um filósofo clássico ou contemporâneo como pano de fundo a partir do qual os dramas dos vários personagens – do próprio Merlí, de diversos alunos e de outros profissionais da escola (professores, diretores, faxineiros) – eram desenvolvidos.

Para isso, Merlí (interpretado pelo excepcional Francesc Orella) sempre dava um jeito de inserir uma reflexão filosófica no episódio, que seria percebida na história de algum personagem ou do momento de vida dele.

Desse modo, conceitos complexos – tais como a “morte de Deus” de Nietzsche, ou a dialética hegeliana – ganhavam um resumo básico, em sala de aula, da boca do inconvencional professor Merlí (certamente inspirado no inesquecível John Keating, vivido por Robin Williams, em Sociedade dos Poetas Mortos) e uma ilustração na vida de algum personagem, de maneira a conferir concretude ao conceito exposto.

Foto: Divulgação

Evidentemente que não se pode esperar um aprofundamento em teses tão difíceis como o racionalismo kantiano ou a teoria do inconsciente de Freud, mas nenhum tema era tratado de forma leviana.

O amplo menu de personagens – na sua grande maioria realmente cativantes e uns poucos fracos e/ou inexpressivos – ajudou muito a que a série pudesse trabalhar tantos e variados temas nos seus 40 episódios com média de 50 minutos cada, por mais que alguns deles se escorassem em certos arquétipos.

Assim, tínhamos o garoto mais popular, pegador, bonito e rebelde da escola na figura de Pol Rubio (Carlos Cuevas), que, apesar de todos os aparentes dotes naturais que a vida generosamente lhe teria conferido, sofria com a pobreza e condições sociais da Catalunha recente e a depressão do pai viúvo.

Somos apresentados a Bruno (David Solans), filho de Merlí, de certa forma forçado a passar a viver com o pai errático e independente, além de lutar para “sair do armário” e assumir sua homossexualidade.

Temos Tania (Elisabet Casanovas), linda loirinha de olhos verdes, mas um pouco fora do peso, a “amiga” ideal, sempre apaixonada por alguém que não lhe corresponde o afeto e confidente de Bruno.

Foto: Divulgação (Carlos Cuvevas, David Solans, Elisabet Casanovas)

Há a bombshell da turma, Berta (a bela Candela Antón), capaz de usar o sexo e a mentira como armas e instrumentos de inserção social e forma de se safar de encrencas, apenas para se meter em outras ainda maiores.

Ivan (Pau Poch), filho de mãe solteira dona de um bar, vítima de bullying ao ponto de desenvolver agorafobia.

Marc (Adrián Grösser), aspirante a ator, cuja mãe trabalha em plantões hospitalares noturnos, deixando o irmão mais novo por conta dele e tendo um pai imaturo, capaz de negligentemente se envolver com mafiosos chineses em negócios duvidosos.

Foto: Divulgação (Candela Antón / Pau Poch, em cima / Adrián Grösser, abaixo)

Gerard (Marcos Franz), filho imaturo e inconsequente da recém divorciada Gina (Marta Marco), que será o interesse romântico de Merlí.

Joan (Albert Baró), o filho ideal, estudioso, tímido, mas claramente reprimido pela figura imponente do pai, advogado de relativo sucesso e, até involuntariamente, muito controlador.

Foto: Divulgação (Marcos Franz, Marta Marco, Albert Baró)

Fora do corpo discente, temos o sistemático e severo professor (apelidado de Hitler pelos alunos), Eugeni (Pere Ponce), platonicamente apaixonado pela colega casada Mireia (Patrícia Bargalló), dançador de música country e, a princípio, roído de inveja e despeito por Merlí, entre outros personagens recorrentes.

Foto: Divulgação (Pere Ponce, como Eugeni / Patrícia Bargalló, como Mireia)

A série tem muitos méritos, além de conseguir trabalhar de forma leve e compreensível temas complexos tanto em esboço teórico quanto em exposições práticas. A abordagem da homossexualidade, por exemplo, é muito positiva. Naturaliza as relações homoafetivas, sem deixar de mostrar as dificuldades que, ainda hoje, os homossexuais enfrentam para se assumir, para serem aceitos e encontrarem a felicidade afetiva. Bruno é apenas o primeiro a apresentar tais dramas, até o surgimento de Oliver (Iñaki Mur), um jovem que, apesar de também ter problemas familiares a partir da morte trágica do irmão mais velho, é um homossexual solar, divertido, alegre e de bem com sua sexualidade e até grande afetação. O surgimento de Quima (Manel Barceló), uma mulher trans já na casa dos seus cinquenta e tantos anos, é hilário e ao mesmo tempo muito significativo. A própria sexualidade dos personagens jovens e maduros é tratada de forma natural e muito apropriada.

Foto: Divulgação (Iñaki Mur e Manel Barceló, travestido de Quima)Manel Barceló)

Outro ponto positivo é o fato de a série se focar em pessoas comuns, da classe média e média-baixa, todas com sua beleza, mas também repletas de imperfeições físicas naturais. Por exemplo, Gina é uma mulher madura e bonita, mas as rugas do rosto são claras. Ivan é um garoto de nariz adunco e cicatriz no rosto. Melí é um homem gordo, sessentão, todo peludo, careteiro, mas repleto de charme cafajeste. Não há, portanto, nenhuma beldade, seja masculina ou feminina (à exceção do Pol Rubio de Carlos Cuevas, inquestionavelmente muito bonito).

A personalidade de Merlí é outro ponto forte. Aparentemente um devoto de Nietzsche, trata-se na verdade, de um personagem agnóstico, bon vivant – mas não hedonista – que expressa paixão pela vida, pela sinceridade de seus sentimentos, palavras e ações, incapaz de se omitir diante de algo que julga ser uma injustiça ou erro ou do sofrimento alheio genuíno. Muitas vezes rude e egoísta, mostra-se como um homem realmente modificado pela filosofia e pela vida.

A trilha sonora é outra coisa diferenciada. Ao final de cada episódio, uma obra clássica – de Beethoven, Bach, Chopin, Debussy, entre outros – encerra a trama mostrada, interagindo de forma orgânica e homogênea.

Em termos de desenvolvimento, os problemas dos personagens não são resolvidos em um único episódio, desenrolando-se ao longo da série, de forma lenta e gradual, o que também é positivo, apesar de algumas vezes parecer que eles retroagem a estágios mentais e comportamentais que já deveriam ter sido superados. O conhecimento da personalidade de cada um e o domínio do seu crescimento talvez seja consequência de que todos os episódios foram dirigidos por Eduard Cortés, que além de dirigir, é, junto com Héctor Lozano, um dos dois idealizadores do programa.

Por último, há apenas um senão na série, que chega a ser lamentável: o conhecido racismo espanhol – facilmente verificável no futebol do país – também está presente na série, que não conta com nenhum personagem preto em seu elenco! Os dois únicos negros da ampla sala de aula em que Merlí ensina são meros coadjuvantes sem falas e um deles ainda por cima some a partir da segunda temporada. É até paradoxal o naturalismo no trato da homossexualidade e tamanha negligência no tocante à questão racial, que fica explicitamente deixada de lado.

Foto: Divulgação (o elenco jovem ao redor do personagem principal com os dois únicos negros, que não têm uma fala própria nas três temporadas)

Tirando esse triste e relevante detalhe, de resto, a série é realmente excelente e diferenciada, inclusive em sua temporada final, surpreendente e bastante emotiva.

Recomendo muito que dediquem seu tempo para apreciar um pouco da filosofia acessível e ao mesmo tempo reflexiva que esta diferenciada série Merlí traz para nós, pela Netflix, que a popularizou pelo mundo afora.

Foto: Divulgação

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Nota: 4 / 5 (ótima)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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