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Críticas

GRANDE SERTÃO – O inferno somos nós… | Crítica do Neófito

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Grande Sertão: Veredas, romance escrito por João Guimarães Rosa, no distante ano de 1956 é, sem qualquer dúvida, uma das grandes obras literárias não apenas do Brasil, mas do mundo!

A escrita poética e, para muitos, enviesada, de Rosa, num estilo que lembra o fluxo de pensamento misturado ao linguajar regional do interior das Minas Gerais – com base, também, na estrutura do alemão, língua que o médico/escritor dominava, tendo sido diplomata brasileiro na Alemanha Nazista – é absolutamente original, incômoda e ritmada, além de referência para escritores ao redor do mundo, como, por exemplo, o moçambicano, Mia Couto.

Grande Sertão – o livro – é um marco da literatura moderna brasileira que, além de antropológico, ao abordar a realidade do cangaço nos sertões brasileiros – em especial o mineiro – é extremamente filosófico, tratando de temas como homoafetividade, questões existenciais, religiosidade, sem falar da fascinante história de amor e conflito de Riobaldo e Diadorim.

Falar bem do livro é “chover no molhado”, uma vez que há inúmeras obras acadêmicas nacionais e internacionais a abordar e dissecar cada detalhe e camada da “estória” criada por Rosa, a partir de suas experiências reais nos sertões e veredas de Minas Gerais.

Em termos de adaptações, há um clássico de 1965, dirigido pelos “irmãos Pereira”, Geraldo e Renato; mas, a versão audiovisual mais conhecida, sem dúvida nenhuma, é a bela minissérie produzida pela Rede Globo, em 1985, dirigida por Walter Avancini e estrelada por Tony Ramos, Bruna Lombardi e Tarcísio Meira, respectivamente nos papeis principais de Riobaldo, Diadorim e Hermógenes.

Há também uma versão teatral (que conta com alguns dos atores dessa nova adaptação cinematográfica) e outra em quadrinhos.

Foto: montagem a partir de arquivos digitais (as várias versões de uma obra-prima)

Eis então que, agora, em 2024, o diretor Guel Arraes – conhecido por diversos programas televisivos na Globo e pela versão seriada (1999) e cinematográfica (2000) de O Auto da Compadecida – resolve fazer uma nova adaptação da icônica obra literária, chamada simplesmente de Grande Sertão, só que passada num “Complexo Sertão”, espécie de favela distópica cyberpunk do Brasil, na qual gangues de bandidos e traficantes (a cocaína é literalmente comparada ao ouro) disputam território com a polícia com ares fascistas (com direito a saudação nazista) e entre si mesmas.

Para os papeis de protagonistas, Guel Arraes chamou Caio Blat para viver o “herói” Rio Baldo (propositalmente separado); sua filha Luísa Arraes para dar corpo a Diadorim; Eduardo Sterblitch como Hermógenes; Rodrigo Lombardi na pele de Joca Ramiro; e Luís Miranda interpretando (o coronel) Zé Bebelo.

E, para resumir, antes de qualquer outra coisa: que filme phod@!!!!! (perdoando-me a empolgação na forma desse palavrão cifrado).

Como praticamente tudo dá certo nesta adaptação!

Foto: Divulgação (no amor e na guerra, vale tudo!)

O risco de lidar com obras tão clássicas e icônicas como Grande Sertão: Veredas (como foi com o O Auto da Compadecida), principalmente alterando o contexto, ambientação e linguagem, é que há muitas possibilidades de as coisas darem muito errado.

Mas o roteiro de Grande Sertão – o filme – também por conta de Guel Arraes junto com Jorge Furtado, conseguiu tornar orgânica as históricas falas regionalizadas e altamente líricas de João Guimarães para o contexto das favelas de viés carioca, envoltas em gírias e funk, de modo a nunca causarem estranheza a mistura de frases imortalizadas pelo lápis do escritor mineiro com as falas de personagens envoltos no tráfico de drogas e constante trocas de tiro com policiais e outros bandidos.

Isso é prova de que Rosa escreveu uma obra que trata de temas universais, cuja trama poderia acontecer tanto no sertão mineiro da década de 1950; quanto num Brasil distópico e de tempo incerto, igual ao filme; como, também, numa Europa ou Estados Unidos, África, Ásia ou Oceania.

A direção de arte e a concepção do chamado Complexo do Sertão, cercado por um enorme e inexpugnável muro, é de tirar o fôlego de tão belo e, ao mesmo tempo, assustador. Lembra alguma coisa do design dos guetos de Jogador Número 1, mas muito mais aglomerado, asfixiante e com cara de Brasil. Os efeitos especiais criaram um mundo fascinante, repleto de cores e de concreto cinza, que faz o espectador imergir naquela localidade logo nas primeiras imagens.

Foto: Divulgação (isso é o que é estar disposto a morrer de amor)

A trilha sonora – graças aos céus! – original de Beto Villares é belíssima e ajuda a contar a história, sendo tensa e melódica, sempre acompanhando a ação que se desenrola, mas nunca a sobrepondo.

A fotografia é uma atração à parte, oscilando entre sombras, penumbras, cores frias e dessaturadas, mas contrastadas, aqui e acolá, com elementos vibrantes e quentes, principalmente no sangue muito vermelho que espirra dos corpos assassinados aos montes pelo filme afora.

A direção de Arraes é dinâmica, segura, tensa, com muitos closes, mas nunca cartunesca.

E o que falar das atuações?

Difícil quem se sai melhor. As interpretações estão num nível altíssimo. Caio Blat vai do idealista professor de Ensino Fundamental a membro de gangue (numa transição algo abrupta), chegando à sua esplêndida composição final (ou inicial, dependendo do ponto de vista) como chefe de facção, narrando sua história na prosa poética de Guimarães Rosa, com intensidade e emoções arrebatadoras.

Rodrigo Lombardi prova, novamente, o quão talentoso é, compondo um Joca Ramiro que é realisticamente mortífero e implacável, ao mesmo tempo que inteligente e justo, destacando-se, no meio da bandidagem, como um verdadeiro líder.

Vários “humoristas” estão presentes na produção, como Sterblitch¸ Luísa Arraes e Luís Miranda, mas, aqui, dão vida a personagens trágicos e densos ao limite!

Particularmente, Sterblitch está medonho (em sentido figurado e concreto), pois o seu Hermógenes é verdadeiramente assustador, o que torna a sua atuação simplesmente impressionante!

Foto: Divulgação (Sterblitch – assustador! -, Rodrigo Lombardi e Luíz Viana, em algumas das várias faces do diabo)

Miranda se impõe em tela e Luísa Arraes dá vida a um Diadorim propositalmente ambíguo sexualmente, lindo e repugnante em igual medida.

O elenco de apoio também não faz feio, mas realmente só está ali para servir de ponte para o quarteto principal.

O filme não poupa nas cenas de violência gráfica e de luta que emulam (um pouco desajeitadamente) John Wick.

E é preciso destacar o teor teatral das atuações de Grande Sertão, ciente de que está narrando um conto universal, uma metáfora, quase uma mitologia, repleta de símbolos e signos, no qual o exagero tem razão de ser, por ser muito mais um arquétipo – do sofrimento, da repulsa, do amor, do ódio, do desejo etc. – do que uma representação fiel de um sentimento real.

E os questionamentos filosóficos – tão presentes na obra de Guimarães Rosa – estão todos presentes, incomodando e fazendo pensar, sendo não apenas declamados pelos personagens, mas visualmente retratados em imagens impactantes.

Para ser chato, pode-se alegar que a composição de Luísa Arraes para sua Diadorim é meio óbvia e menos dúbia do que se esperaria; além disso, o terceiro ato é um pouco mais corrido do que os dois anteriores, mas, isso, como dito no início, para ser chato, do ponto de vista técnico.

Do ponto de vista artístico, Grande Sertão é arrebatador, visceral, tenso, lírico e muito bonito de se assistir. Não à toa, Guel Arraes foi premiado como melhor diretor no Critic’s Pick Tallinn Black Nights Film Festival (PÖFF), sediado na Estônia, em novembro de 2023.

Finalmente uma obra cinematográfica brasileira digna de um cinema maduro e comprometido com a qualidade e a mensagem do seu produto.

A obstinação, a lealdade, a homofobia, o niilismo ou a religiosidade, todos vividos de forma absoluta, são construções humanas magníficas, mas que são facas afiadas postas nas nossas mãos, que tanto podem ser utilizadas para abrir um pão quanto a barriga de outra pessoa.

É isso que torna o ser humano tão mágico, tão divino e, ao mesmo tempo, tão cruel e demoníaco…

Até a próxima viagem, passageiros Nerdtrip!

Foto: Divulgação (talvez, na realidade alternativa em que Julieta e Romeu terminam juntos, Diadorim tenha um destino melhor)


Nota: 4,5 / 5 (excelente)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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