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Críticas

A BALEIA | Crítica do Neófito

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A Baleia é um filme triste.

Bastaria esta simples frase para resumir toda e qualquer crítica acerca desta mais recente obra do cineasta Darren Aronofsky (Cisne Negro), pois, de fato, trata-se de um filme triste, do começo ao fim.

Mas é evidente que ninguém se disporia a ler qualquer crítica que simplesmente diga que “o filme ‘x’ é triste, ponto final”, não é mesmo?

Deste modo, partindo para a análise mais detalhada da obra, em primeiro lugar, há que se destacar que o filme exibe, claramente, duas grandes influências na sua concepção, a saber: a) sua origem teatral, uma vez que adapta a peça homônima escrita, em 2012, por Samuel D. Hunter; e b) o forte embasamento nas teses freudianas acerca do princípio da pulsão, seja a “de vida” (Eros) ou “de morte” (Tanatos). E essas duas “influências” apresentam problemas na transposição da história para a linguagem cinematográfica.

Começando pela origem teatral, o fato é que ela obriga que todo o cenário do longa fique circunscrito – assim como no magistral Meu Pai, 2020 (veja a crítica aqui), também oriundo do teatro – a um único ambiente, ou seja, o apartamento do personagem principal Charlie (do qual falaremos mais abaixo). Fora isso, têm-se apenas pequenos vislumbres do ambiente externo e de uma emblemática cena de praia, construída a partir de uma lembrança afetiva daquele. Além disso, os diálogos e demais personagens surgem excessivamente esquemáticos, com poucas nuances, o que, no mais experimental espaço-tempo restrito do teatro, funciona muito bem, mas que, no cinema – muito mais dependente de tomadas e ângulos de câmera variados, além de estrutura narrativa mais definida – acaba tornando a entrada e saída de personagens numa coisa mais próxima do artificial. Com isso, não queremos dizer que as interpretações sejam ruins; muito pelo contrário. Apenas que essa dinâmica teatral não se coaduna harmoniosamente com a linguagem cinematográfica.

Essa circunscrição de cenário ainda se une à (notável) cenografia apresentada e à fotografia sempre escura e azulada (lembrando que, nos EUA, o azul/blue significa baixo astral), criando uma atmosfera claustrofóbica – o que até é pertinente com a situação de vida do protagonista – e simboliza o homem preso dentro de si mesmo. Incrível como, no espetacular O Quarto de Jack (2015), o pequeno cômodo em que Jack e sua “Ma” ficavam confinados pelo seu sequestrador dava a ideia de ser muito maior do que era de verdade, graças ao amor que havia entre filho e mãe. Em A Baleia o efeito é justamente o contrário: apesar de amplo, a moradia do protagonista Charlie (Brenda Fraser, estupendo!) denota ser apertado, insuficiente e verdadeira prisão para ele, que mal consegue se locomover por seus corredores.

Foto: divulgação (um sorriso pode ser apenas a máscara das lágrimas…)

E claro que a mobilidade não se deve tão somente aos aspectos arquitetônicos do ambiente. A história nos mostra a vida bastante complicada de Charlie – competente professor de produção textual, de voz sempre segura, branda e acolhedora – mas que não tem coragem de ligar a câmera de seu notebook para ministrar suas aulas online, em razão de sua obesidade mórbida, adquirida após a perda – por depressão e o suicídio – de uma pessoa muito amada. Pesando mais de 200kg – num trabalho de maquiagem e protético realmente impressionante – sua morfologia é assustadoramente gigantesca (e dantesca), evidentemente emulando uma baleia. Por causa disso, o personagem tem enorme vergonha de si mesmo, vivendo pedindo desculpas para todo mundo que o cerca. Só que a vergonha física não é nada comparada à sua vergonha “moral” (ou anímica). Assim como comeu sem pensar até adoecer por meio de um corpo descomunal, ele também agiu impensada (ou impulsivamente) na sua vida pessoal, criando uma situação de culpa ‘autopunitiva’. A grande questão é que, ao que parece, Charlie já tinha vergonha de si mesmo – de suas escolhas, de sua orientação sexual etc. – muito antes de se tornar um obeso mórbido. O corpo deformado apenas reflete a autoimagem que ele tem de si mesmo, aquilo que ele acredita ser em essência, mesmo se mostrando um ser humano amoroso, empático e compreensivo, fato atestado pelo cuidado que demonstra com os amigos, o entregador de comida e com o passarinho que vem à sua janela comer da comida que ele gentilmente coloca num prato diariamente.

Foto: Divulgação (água de fogo na vida de Charlie)

Nesse sentido, quando o filme inicia, deparamos com Charlie apresentando sinais de que sua vida corre sérios riscos, haja vista sua saúde precária, causada, obviamente, por sua obesidade fora do normal e, ainda que ciente disso, ele se recusa terminantemente a ir para o hospital, o que causa bastante irritação de sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau, sóbria). O clima do lado de fora é sempre chuvoso e cinza, podendo simbolizar que, se o “mundo” de dentro é ruim, o de fora pode ser muito pior. Mas é interessante notar que, apesar de torrencial, a chuva nunca impede – e não parece molhar – nenhum dos demais personagens que surgem em tela, entrando e saindo da “casa/vida” do protagonista, como se ela – a chuva – fosse, na realidade, a percepção de hostilidade, perigo e dor que o protagonista tem a respeito do mundo exterior, e não aquilo que ele realmente seja (algo, aliás, que fica bastante evidente na contrastante cena final).

É neste cenário “pequeno” e sufocante – cujos odores quase dão para sentir pela tela, haja vista o cuidado cenográfico – que toda a trama se desenrola, a começar pelo jovem missionário Thomas (Ty Simpinks, convincente), que surge de repente na casa de Charlie, quando este está prestes a ter um infarto fulminante. É neste instante, também, que surge, pela primeira vez, a misteriosa redação sobre o clássico livro Moby Dick, que parece fascinar Charlie de modo quase religioso por todo a duração do filme. Logo em seguida, entra em cena a já mencionada Liz, para aplicar os cuidados médicos necessários à sobrevivência do protagonista e, pouco mais adiante, somos apresentados à Ellie (Sadie Sink, a Max, de Stranger Things, muito competente, mas soando repetitiva face a seu mais icônico papel até o momento), que é uma adolescente mais do que rebelde: extremamente rude, agressiva, deseducada e cruel, e que, além de tudo, é a filha de Charlie abandonou há nove anos (quando ela tinha apenas oito), ao se apaixonar por outra pessoa, largando a família que formava com a menina e sua esposa Mary (Samantha Morton, sempre ótima).

Foto: Divulgação (aquele que quer salvar os outros pode acabar se afogando no processo…)

Aronofsky, então, demonstra, em variadas cenas, a enorme dificuldade de se ter um corpo daquele tamanho, ilustrada em atos simples, como a dificuldade de se conseguir levantar do sofá sem ajuda, de andar sem apoio de andador ou de cadeira de rodas, de se banhar e, até mesmo, de se conseguir pegar o celular que acidentalmente cai no chão. Mostra, também, que tais dificuldades se somam à rotina quase enlouquecedora de Charlie, à qual se divide – como o próprio personagem narra em determinado ponto – a trabalhar (corrigindo provas, postando materiais e dando aula pelo computador) e a comer! A rotina é ilustrativa, como se o personagem tivesse, realmente, se tornado um “animal” – no caso, uma baleia – e, portanto, obrigado a seguir apenas o curso da natureza, tendo perdido seu livre-arbítrio de humano (mas será que, em algum momento, o ser humano tem, de fato, liberdade para escolher?).

O segundo ponto-chave do filme (ou, mais propriamente, do roteiro) – abordado lá no terceiro parágrafo – é sua tentativa de ser “profundo”, trazendo discussões que têm muito a ver com a tese das pulsões (de vida e de morte) que Freud desenvolveu. Charlie, evidentemente, é construído como exemplo clássico do homem que, tomado pela enorme melancolia derivada de seu luto mal resolvido, expressa enorme pulsão de morte, sabendo que comer daquele jeito o irá matar (ainda que seja o seu único real prazer na vida), ao mesmo tempo que se recusa a ir ao médico se tratar. Acreditando não ter feito “nada de bom” na vida, ele busca, de toda forma – até mesmo por meio de suborno – reaproximar-se e reconectar-se com sua filha Ellie, que não tem nenhum pudor em explorar o sentimento de culpa do pai, com atos extremamente cruéis quase todo o tempo, mas que são interpretados pelo pai como sinais de extrema inteligência e de personalidade extraordinária.

Mas a “profundidade” é menos “profunda” do que os autores (da peça e do roteiro) gostariam que fosse. Há, pelo contrário, boa dose de melodrama – que é outro elemento bastante funcional no teatro, mas que, se não muito bem trabalhado no cinema, acaba sugando força da obra – e conflitos pouco trabalhados, à exceção, talvez, daquilo que não é mostrado, como a questão do luto de Charlie. Já o arco dramático de Thomas é bastante clichê, bem como o comportamento de Liz, que também parece cuidar tão dedicadamente de Charlie por sua também noção equivocada de culpa. Ellie também é bastante unidimensional, só demonstrando laivos de maior complexidade nos dois minutos finais do filme e, mesmo assim, de forma bastante esperada, o que reforça sua construção mais como arquétipo específico do que como personagem próprio. Os poucos minutos de tela de Samantha Morton, porém, são brilhantes, haja vista a quantidade de camadas que a atriz imprime em sua Mary, com expressões, gestuais, tom de voz e pequenos detalhes que denotam sua enorme competência como artista.

Por fim, não há como não dedicar um parágrafo específico à atuação de Brendan Fraser. Ex-galã altamente requisitado da década de 1990 – conhecido por comédias escrachadas, como George, o Rei da Floresta e a franquia A Múmia (além de tentativas dramáticas, como em O Americano Tranquilo, de 2002) – o ator norte-americano diz ter ido além do que era recomendável para seu corpo nos anos intensos em que esteve no auge, além da revelação de ter sofrido abuso sexual, em 2003, por parte do então presidente da Associação de Imprensa Internacional de Hollywood, responsável pelo Globo de Ouro, Philip Berk. Sumido e restringindo-se a pontas e papeis menores, o ator renasce das cinzas qual uma Fênix com sua interpretação de Charlie. Ganhou peso para facilitar a caracterização; submeteu-se a horas e horas de maquiagem e montagem para ficar com aparência e corpo de homem com 250Kg… mas, nada disso significaria nada – que o diga Eddie Murphy, naquela coisa horrorosa chamada Norbit – se não fosse o compromisso e comprometimento emocional do ator com o projeto.

Nesse sentido, Fraser está, realmente, impecável no “corpo” e na alma de Charlie, sendo a força motriz da obra. Não é o seu descomunal corpo que ocupa a tela, mas sua atuação. Se o Oscar de melhor ator não for para ele, há algo de muito errado acontecendo com a Academia de cinema de Hollywood! Sua voz sempre contida, quase medrosa, sempre conciliadora é absurdamente convincente e tocante. Suas expressões, seu cuidado com a respiração sempre ofegante de um homem que se cansa até mesmo de se ajeitar no sofá, trejeitos, silêncios, tudo está perfeito! E ele faz tudo isso sem quaisquer exageros, optando pela sutileza e não pelo histrionismo. As próteses e maquiagem ajudam a compor o personagem, mas é o trabalho de ator que impressiona, dando a ideia de que seria dispensável todo trabalho com o exterior para que Fraser, mesmo sem qualquer adorno, conseguisse nos convencer de que era alguém com obesidade mórbida e muita culpa para expiar. Difícil recordar, nos últimos tempos, atuação tão profunda e precisa quanto essa!

Há, por fim, que se considerar como Darren Aronofsky consegue dirigir bem seus atores, extraindo deles interpretações sempre acima da média, como, por exemplo, com Natalie Portman, em Cisne Negro; com Mickey Rourke, em O Lutador e, agora, com Fraser.

Dito isso, assim como Avatar: O Caminho das Águas é um filme que merece ser visto em Imax 3D, por representar a maior experiência imersivo-cinematográfica desde, talvez, O Senhor dos Aneis, o filme A Baleia, apesar de toda a tristeza que exala a cada frame, merece ser assistido por alguns de seus méritos, mas, fundamentalmente, para que se tenha a oportunidade de ver uma das melhores e mais tocantes atuações dos últimos tempos.

Foto: Divulgação (viver também pesa)


Nota: 3,5 / 5 (muito bom)

 


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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