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Críticas

AMÉRICA ARMADA | Crítica do Neófito

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“A guerra, ela fica pra dentro das favelas, porque a droga, ela tá em todo lugar. Então, não é guerra às drogas, é guerra ao pobre. Essa guerra, ela tem um recorte social; ela tem um endereço onde ela acontece. Dessa fronteira da favela pra fora, ela não pode acontecer.” (Raull Santiago)

Ninguém em sã consciência vai negar quanto o vício em drogas é prejudicial aos que delas se tornam dependentes, com desdobramentos imprevisíveis para o núcleo familiar e círculo de amigos. Todavia, há anos que muito se tem discutido sobre o fato de a dependência química representar, em essência, um problema de saúde pública, na qual os dependentes são claramente doentes, muitas vezes explorados pelo tráfico; e não uma questão que poderá ser combatida tão somente com políticas de segurança, como tem sido conduzida até agora.

O próprio Estados Unidos da América – o grande baluarte mundial na guerra contra as drogas – têm, parcimoniosa e setorialmente, começado algumas experiências modestas de liberação e legalização de algumas substâncias, como a maconha, que em outros países – mais propriamente o Uruguai, a partir de 2013 e vários países europeus (Suíça, Suécia etc.) – já passaram a ser quase que totalmente liberadas para consumo, com resultados surpreendentemente positivos para a segurança.

No Brasil, o Ministro Luís Roberto Barroso, em entrevista a Pedro Bial, em 2017, declarou explicitamente que, no seu entender, a guerra contra as drogas é uma luta inglória e que a discussão acerca da legalização deveria ser levada mais a sério.

De fato, num mundo capitalista (e sem qualquer viés socialista, mas meramente factual) a quem interessa a manutenção deste processo de luta contra o narcotráfico, que tem se mostrado infrutífero (para dizer o mínimo) e setorizado? Afinal, na lógica capitalista, o objetivo é o lucro. Assim, refazendo a questão, quem estaria lucrando com essa guerra sem fim, apontada basicamente para os setores menos favorecidos da população?

Sim, trata-se de uma guerra que ocorre basicamente nos guetos, com milhares de mortos anualmente, enquanto não se têm notícias de batidas policiais nas festas ricas regadas a ecstasy, cocaína, heroína e afins, que uma conhecida socialite-celebridade certa vez chegou a explicitar, inclusive informando da existência de entrega de drogas em sistema de delivery.

Este próprio colunista que lhes escreve, em seu trabalho tradicional, precisa diariamente lidar com os resultados da guerra ao narcotráfico a varejo, isto é, daquele ocorrido nas periferias, no enfrentamento diário entre aviõezinhos, traficantes e policiais militares e civis. Não são poucos os atestados de óbito que lhe passam pelas mãos, entregues por mães, pais, irmãos e irmãs chorosas, resultado da opção pelo tráfico, muitas vezes pela falta de melhor opção.

Não queremos, com isso, romantizar ou justificar o tráfico e consumo de drogas. Trata-se, sem dúvidas, de uma chaga social. A crítica é sobre o método de enfrentamento, historicamente realizado pelo canal da violência contra a violência, que faz com que os peões caiam aos montes sobre o tabuleiro, enquanto os reis e rainhas continuam incólumes e protegidos pelo poder econômico ilegal e sem contrapartida social que a atividade criminosa lhes proporciona.

Educação e saúde sempre são indicados como as únicas áreas em que os investimentos para combate às drogas gerariam resultados efetivos, ainda que a médio e longo prazo.

Enquanto isso não ocorre, a indústria armamentista fatura muitíssimo com seus clientes estatais e ilegais (algo que chegou a ser sugerido no oitavo filme da saga Star Wars Os Últimos Jedi – que, não à toa, foi suficientemente controverso para ser praticamente desconstruído pelo estúdio no episódio IX; e jogado na cara no bom filme de Nicolas Cage, O Senhor das Armas, em 2005).

O México, a Colômbia e o Brasil, em termos de continente americano, têm tristemente se destacado como os Estados mais afetados negativamente pela luta contra o tráfico de entorpecentes. O México sofre com o contraste absurdo entre si e o país com quem faz fronteira ao norte (algo também mostrado de forma perturbadoramente negativa e xenofóbica no último e fraquíssimo Rambo: Até o Fim, e muito bem retratado no primeiro e excepcional Sicario: Terra de Ninguém, de 2015). A Colômbia e suas FARC, foi historicamente considerada, por anos, como o maior país fornecedor de drogas para o mundo. E o Brasil ostenta no currículo a polícia que mais mata e mais morre no mundo.

A violenta guerra inglória desses três países contra as drogas recebe um recorte emocional e bastante pessoal no documentário América Armada, produzido e dirigido por Alice Lanari e Pedro Asbeg, em 2017. Mas, apesar dos 4 anos que separam as filmagens da sua exibição, em 2021, é incrivelmente atual.

 Foto: Divulgação (Pedro Asbeg e Alice Lanari)

América Armada acompanha a militância de Raull Santiago, membro do Coletivo Papo Reto, morador do Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, na cobertura das operações bastante heterodoxas e autoritárias da Polícia dentro da comunidade; mostra a luta de Teresita Gaviria no apoio às mães que, como ela, perderam o filho violentamente, por meio do grupo Madres de La Candelária; e, por fim, segue o trabalho do jornalista mexicano e jurado de morte, Heriberto Paredes, que cobre a formação das polícias comunitárias nos lugarejos indígenas de seu país, que se armaram para combater pessoalmente a violência gerada pelo tráfico de drogas.

“Então, quem perde a guerra somos nós. Os que estão alinhados com o governo não perdem nada. Perderão a alma no dia em que morrerem.” (Teresita Gaviria)

A estrutura do documentário é bastante tradicional, sem maneirismos cinematográficos. Opta-se pelo naturalismo e a cobertura silenciosa, passiva e voyeurística, apenas de acompanhamento do trabalho dos militantes. Esta opção favorece o realismo, mas perde em emoção, mesmo quando são mostradas as dolorosas lembranças das mães que perderam os filhos.

Foto: Divulgação (Teresita Gaviria)

Mas, ainda que a frieza da cobertura prive o espectador de uma maior identificação com os personagens reais retratados, é inevitável não sentir a tensão quase incômoda de certas cenas reais filmadas, como a do confronto entre Santiago e um policial militar à paisana. Aliás, é nítida a diferença do arco do documentário que se passa no Brasil, que se permite até mesmo a certa poesia visual ao mostrar o horizonte carioca visto das lajes do Complexo do Alemão. Na favela brasileira, o tom crítico é bem mais forte e presente. O arco mexicano é bastante melancólico e desesperançoso, com Paredes surgindo como uma espécie de cavaleiro solitário na documentação de fatos tão relevantes para seu país; já o arco de Teresita se destaca pela presença forte daquela senhorinha tão destemida, que conta, entre risos, o fato de ter sido sequestrada e arrastada pelos pés por um bando de traficantes, enquanto cortavam os dedos de um X-9 na sua frente.

O final do documentário deixa em aberto a complexa situação, em que, claramente, o Estado se mostra totalmente ineficaz e voltado a combater apenas um segmento específico da sociedade, usando a violência como desculpa para o emprego de mais violência, num loop que parece não ter solução.

Foto: Divulgação (Raull Santiago)

Muito bem realizado e incrivelmente atual, América Armada merece uma olhada profunda, que, infelizmente, não será apreciada por quem já o assistir com certas lentes ideológicas específicas.

Numa última colocação pessoal, chega a dar certo arrepio na nuca ao ver, no México, pessoas comuns formando grupos armados para atuarem onde o Estado não chega ou não quer chegar, ao se pensar que, muito recentemente, o atual Presidente do Brasil editou mais um dos vários decretos de flexibilização para aquisição de armas pela população, lembrando que, em uma de suas falas, ele afirmou que estas poderiam ser usadas numa luta contra prefeitos e governadores que adotassem certos posicionamentos políticos…

“Existe uma nova fase dentro do capitalismo, que se vive na América Latina, que eu chamaria de capitalismo criminoso, em que a violência é também um grande negócio” (Heriberto Paredes)

Foto: Divulgação (Heriberto Paredes)

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Nota: 3,5 / 5 (muito bom)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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