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Críticas

MÃES PARALELAS – Almodóvar e a orfandade de uma nação | Crítica (tardia) do Neófito

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Em 2019, Pedro Almodóvar lançou aquele que pode ser chamado de seu mais pessoal projeto cinematográfico, o intimista Dor e Glória, que é quase uma autobiografia metalinguística do famoso diretor espanhol, estrelado magistralmente pelos internacionais Antonio Banderas e Penélope Cruz, atores favoritos e grandes amigos do cineasta.

Contando a história de um diretor de cinema sem inspiração e adoecido, trata-se de filme sobre lembranças pessoais, um exercício de como a memória funciona e o peso da subjetividade no processo de recordar.

Com seu mais recente filme – mais uma vez protagonizado pela sempre bela e competente Penélope Cruz, no papel da fotógrafa JanisAlmodóvar dá segmento ao seu escrutínio do passado, porém com algumas diferenças substanciais com relação a Dor e Glória: em primeiro lugar, sai-se da memória particular de um homem e seus traumas, para o campo da memória coletiva do povo espanhol acerca dos horrores perpetrados na terrível Guerra Civil Espanhola que matou milhares de espanhóis no final da década de 1930. A segunda diferença está na forma de se debater o assunto, que em Mães Paralelas (disponível na Netflix) é metaforizado na maternidade que permeia o filme. Ou seja, ao invés da abordagem direta do filme anterior – ou da pegada explícita de Guillermo Del Toro em O Labirinto do Fauno, também focado na Guerra Civil Espanhola – Almodóvar prefere a sutileza na abordagem do assunto (pelo menos até a última cena), ainda que abusando da fórmula do dramalhão, gênero que o cineasta espanhol domina como ninguém.

Nesse sentido, a história da maternidade paralela de Janis (Cruz) e de Ana (Milena Smit) – duas mulheres espanholas; mães solteiras oriundas de gravidezes inesperadas (ou até mesmo indesejadas); uma madura, criada pela avó (Janis); a outra, adolescente, criada pelo pai conservador e amparada pela mãe atriz/ausente/culpada (Ana) – encerra em si vários dos elementos que compuseram a violenta disputa entre os republicanos (“progressistas/esquerdistas”) e os nacionalistas (“conservadores/direitistas”) do temível ditador Francisco Franco (qualquer semelhança com o cenário político atual de diversos países, incluindo o Brasil, não é mera coincidência!).

Foto: Divulgação (a mãe adolescente e a de meia-idade)

Dividindo o mesmo quarto de espera pouco tempo antes do parto, as duas mulheres, Janis (nome originário da roqueira Janis Joplin, símbolo da utopia contracultural da década de 1960, e cuja mãe morre da mesma forma e idade de sua ídolo) e Ana (adolescente, filha de burguesa atriz de teatro em idade de “fim de carreira”) acabam criando forte ligação de empatia, ambas dando à luz a belas meninas. Os desdobramentos dessa relação revelariam spoilers indesejáveis, de modo que só se pode dizer que o vínculo entre elas vai se aprofundar cada vez mais, à medida que as filhas crescem, desenvolvendo o núcleo melodramático concebido por Almodóvar.

Como sempre – aliás como ressaltada por Adriana Calcanhoto, na bela canção Esquadros – é fundamental prestar a atenção nas “cores de Almodóvar”, utilizadas como recurso narrativo de enorme importância para a câmera do cineasta.

Em determinado momento de conflito culminante entre Janis e Ana, por exemplo, as duas se encontram numa cozinha, filmadas em plano aberto, corpo inteiro. Entre as duas, a mesa central de cor amarelada retrata o fato delas, naquele momento, estarem se colocando em lados opostos, divididas, em embate; mas, além disso, as cores de suas roupas – camisa e calça em cinza e verde – estão trocadas, simbolizando exatamente a inversão de papeis que está prestes a ocorrer. Há, nesta mesma cena, o detalhe de que, do lado de uma das personagens, o armário e a porta aos fundos se encontra aberta e a da outra fechada; sem falar nos símbolos cristãos – peixe, no quadro na parede; pão sobre a bancada – denotando o sacrifício de amor que será exigido de uma delas e o perdão da outra. E isso apenas em uma cena!

Foto: Divulgação (“cores de Almodóvar”)

Evitando-se alongar nos aspectos técnicos, tem-se que, ao menos, citar a bela direção de fotografia de José Luis Alcaine (colaborador regular do cineasta espanhol), capaz de extrair beleza e relevância de pequenos detalhes das locações externas e internas, usando luz, cores e texturas que ajudam a contrastar o passado da arquitetura espanhola com a modernidade dos celulares, laptops e carros automáticos, essencial à narrativa. A direção de atores, como de praxe, é show à parte de Almodóvar, que retira – além das suas já citadas atrizes principais (Penélope Cruz e Milena Smit) – interpretações nem um pouco vulgares das coadjuvantes: a velha conhecida Rossy de Palma (Elena, amiga de Janis); a veterana e ainda bela Aitana Sánchez-Gijón (Tereza, mãe de Ana); e do interesse romântico de Janis, Arturo, interpretado por Israel Eleijade.

Voltando a análise dos aspectos subjetivos do filme, há que se destacar a questão do perdão, da dor das mães e filhos que perderam filhos, mães e pais na sangrenta guerra que dividiu a Espanha de 1936 a 1939, seguida de uma ditadura que só terminou em 1975, quando Franco morreu. Tudo isso está simbolizado no conflito que ocorrerá entre as duas mães prefiguradas em Janis e Ana.

Em paralelo ao drama falsamente trivial e particular entre as duas mães opostas e fortemente ligadas entre si, corre a trama da escavação de uma fossa onde estariam enterrados vários executados pelo regime de Franco, nos moldes dos famosos “Massacres de Paracuellos”, explicitando ainda mais a simbologia oriunda da história materna.

A cena final – que tanto vem sendo discutida – escancara a metáfora e a reflexão de Almodóvar sobre o passado tenebroso que assustadoramente ameaça a se repetir (principalmente no Brasil), justamente por nos esquecermos de que somos todos filhos de uma mesma pátria, de um ideal de nação e de mundo, de um sonho utópico de construção de uma sociedade mais justa e solidária, independentemente da ideologia mais à direita ou à esquerda que, algumas vezes, chegam até mesmo a se relacionar, mas acabam por novamente se polarizarem pela colocação de interesses particulares sobre os coletivos.

De modo que o filme Mães Paralelas pode ser apreciado como mero (mas ótimo) dramalhão latino folhetinesco, bem ao gosto da novela Por Amor (1997-1998); mas pode, ao mesmo tempo, ser degustado como sutil e mordaz crítica reflexiva sobre história, passado, presente e futuro, seus reflexos na política e na vida cotidiana.

Há inegável nota de esperança e otimismo no longa de Almodóvar, principalmente no tocante ao relacionamento entre as poderosas mães que desfilam pelo filme, apesar da contundente advertência sobre os rumos que as coisas podem tomar se continuarmos a repetir velhos padrões.

Todavia, pelo quadro atual da geopolítica internacional, marcado pela real possibilidade de uma terceira guerra mundial, faz-se necessário muita reflexão se temos realmente aprendido com os erros históricos cometidos enquanto gênero humano…

Foto: Divulgação (será que o ser humano é capaz de aprender com seus erros com vistas a um futuro melhor?)

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Nota: 4 / 5 (ótimo)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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