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Críticas

A FILHA PERDIDA – Ser mãe é padecer no paraíso e no inferno também | Crítica (tardia) do Neófito

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ALERTA DE SPOILERS!!!!!

A Filha Perdida – primeira aventura na direção da até então ótima atriz, Maggie Gyllenhaal, a partir do romance homônimo escrito em 2006 pela misteriosa Elena Ferrante – é um filme incômodo, em torno de uma personagem incômoda, abordando um tema incômodo. Mas, ainda assim, é filme muito acima da média, que desperta vários debates e reflexões após ser assistido.

Esse “incômodo”, porém, não advém de nada escatológico, repugnante ou porque a obra queira ser incômoda, ao contrário, por exemplo, de O Sacrifício do Cervo Sagrado (Yorgos Lanthimos, 2017), feito para incomodar, tanto por sua abordagem e história, quanto por sua estrutura e personagens.

O que causa desconforto em A Filha Perdida (disponível na Netflix) é sua temática profundamente feminina em nossa sociedade tão machista, sexista e até mesmo misógina (e o episódio recente das falas de certo deputado paulista sobre as mulheres ucranianas é exemplo mais que patente disso!).

E essa temática provoca uma reação imediata com relação à personagem principal, Leda (Olivia Colman, brilhante), que é, quase inevitavelmente, o ato de a julgar. Vendo-a, julgamo-la fria, arrogante, insensível, antissocial, algo bipolar, esnobe… E, com o passar do filme, a tendência é ainda enxergá-la como mãe desnaturada (algo que ela, aliás, confessa ser: uma “unnatural mother”), egoísta, adúltera… enfim, o veredito final é de que se trata de uma péssima mulher!

Foto: Divulgação (brincando de boneca nessa idade, Colman?)

Afinal, o senso comum afirma que uma mulher de verdade teria que ser muito feminina, altamente sensível, receptiva e, principalmente, naturalmente dotada daquele suposto e decantado instinto maternal! Nunca, como Leda, ser capaz de reclamar da baixa performance sexual do marido Joe (interpretado por Jack Farthing) ou de – pecado mortal – expressar dubiedade com relação à maternidade!

Pois Leda fez tudo isso, com incrível sinceridade e autenticidade. Ela ama as filhas, mas do jeito dela, sem se fazer rogada ao decidir “sumir” por 3 anos, durante a infância da prole, para se dedicar à sua carreira acadêmica e aos braços de um amante capaz de citar sua pesquisa de cor (Professor Hardy, vivido com competência por Peter Sarsgaard).

Foto: Divulgação (ah, nada como uma interação intelectual…)

Leda não é simpática: ela só possui enorme verniz social; algo que fica patente na cena em que é claramente galanteada pelo personagem sem nome de Ed Harris (envelhecido, mas sempre competente), na hora em que jantava e, após trocar algumas palavras educadas, pergunta com cruel sinceridade se “agora podia voltar a comer”, deixando seu interlocutor completamente desconcertado. Mas, logo em seguida, lança-se sobre ele para cumprir o papel social da mulher a ser conquistada.

Ela sabe se relacionar com outras pessoas, mas claramente adora ficar sozinha, inclusive nas suas férias na Grécia, ao ponto de se incomodar profundamente com a chegada de outros turistas na “sua” praia e de não ceder alguns metros de sua posição na areia para ajudar aos “vizinhos” indesejados. Outro traço marcante é ser ela – uma mulher – quem costuma fazer piadas de duplo sentido para as outras pessoas, que raramente as entendem, forçando-a a explicar o fato.

Ela sente culpa por, quando jovem (fase em que é vivida pela ótima atriz Jessie Buckley), ter abandonado as filhas sob os cuidados do pai e só haver retornado porque havia (egoisticamente) “sentido saudades”; por outro lado, sabe que, se tivesse agido diferente e ficado na família por obrigação, também não se perdoaria e, provavelmente, teria jogado a culpa desse sentimento nas filhas, bem ao estilo Homer Simpson: “a culpa é minha; eu coloco em quem eu quiser”.

Trata-se, portanto, de personagem fascinante: complexa, rica, repleta de camadas e tremendamente humana de tão imperfeita! Outra atriz que não Olivia Colman (e Jessie Buckley) e a caracterização poderia facilmente decair para a caricatura. As respectivas atrizes britânica e irlandesa – sob a batuta segura de Gyllenhaal, também mulher – conseguem imprimir sutilezas nas suas interpretações, cativando e repugnando em igual medida. Colman, porém, destaca-se por retratar a personagem numa idade mais avançada, após já ter tomado as decisões que lhe marcariam a vida futura (no caso de Colman, a presente), ou seja, tendo que arcar e viver com os bônus e os ônus de tais escolhas.

Mas todos os sentimentos conflituosos acima descritos poderiam ficar adormecidos dentro de Leda se não fosse a chegada – em plena praia grega na qual descansava e informalmente trabalhava em seu objeto de estudo acadêmico – de vibrante e escandalosa família – supostamente de mafiosos, mas sem que isso tenha peso maior na trama – formada pelo patriarca, a matriarca grávida, vários inconsequentes adolescentes, alguns agregados e, por fim, da bela “nora” Nina (vivida pela cada vez melhor Dakota Johnson, afastando-se mais ainda de sua persona de Anastasia Steele, em 50 Tons…), mãe de uma pequena e mimada filha pequena, extremamente apegada a uma boneca.

Foto: Divulgação (Anastasia, o que você faz por aqui? Christian Gray sabe disso?)

O relacionamento de Nina com a filha – cuja citada boneca era do mesmo modelo que Leda havia ganhado da mãe quando nova e passado para as filhas, que a vandalizaram com canetinhas e tintas diversas, levando-a a quebrar o brinquedo num acesso de raiva – fascina a personagem principal, que acaba por permitir a aproximação da espalhafatosa família. Há clara identificação entre o passado de jovem adulta e cheia de sonhos de Leda, mas com amplas dificuldades de lidar com a prole, e a realidade de Nina, deixada sozinha com a filha junto à família do marido durante toda a semana, na qual o pai “some”, para só retornar no fim-de-semana. A sobrecarga da jovem e bela mulher, impedida de tomar sol sem ter que se preocupar com a filha menor é rapidamente percebida por Leda, que também se via tolhida até mesma para poder se masturbar em paz (apesar de que, fazer isso na sala de estar da casa, durante o dia, com as crianças acordadas, é correr risco claro de ser pega em flagrante!). A empatia ainda se acentua, quando Leda descobre Nina se entregando a uma aventura erótica com certo estudante inglês, da mesma forma que ela havia feito na juventude, com o Prof. Hardy.

Após um gesto nobre de procurar e achar a menina que ‘deu um perdido’ na família, Leda, por outro lado, sem maiores explicações, simplesmente pega e esconde a amada boneca da filha de Nina, deixando a menina inconsolável.

Ela compra roupas novas para a boneca, limpa-a e passa a dormir abraçada ao brinquedo alheio, como se quisesse experimentar a maternidade ideal imaginada na sua cabeça, ou seja, filhas que se comportam exatamente como bonecas: dóceis às roupas que se queira colocar nelas; nunca reclamando de fome, frio, sono ou de ficarem sozinhas dentro do armário quando necessário; quietinhas e acolhedoras em igual medida etc.

Mas toda idealização é falha, afinal, basta Leda envolver a boneca ternamente nos braços para que saia água de dentro do brinquedo, sujando sua roupa, igual a quando crianças novas regurgitam sobre a gente. Um pouco mais tarde, quando tentava secar e tirar obstruções dos orifícios da boneca, toma o maior susto ao se deparar com robusto piolho-de-cobra a sair da boca do brinquedo, afinal, crianças, por mais belas e asseadas que sejam, evacuam a toda hora e expelem várias secreções de seus corpinhos, cuja responsabilidade de limpeza fica, na maioria esmagadora das vezes, por conta da mãe.

Nesse processo, Leda terá que aprender que a vida – e principalmente as pessoas, incluindo nossos filhosnunca são como gostaríamos que fossem e que viver do jeito que queremos, invariavelmente também nos custará alguma coisa.

O paralelo com outras duas mães fictícias, ambas vividas pela magnífica Merly Streep, é inevitável. Tratam-se de Joanna Kramer, de Kamer vs Kramer (1979); e a Francesca Johnson de As Pontes de Madison (1995). No primeiro caso, Joanna, quase como Leda, abandona o filho, mas depois retorna querendo compensar sua falta. Já Francesca, por mais que tenha descoberto a si mesma na paixão que lhe surgiu pelo sedutor fotógrafo forasteiro vivido por Clint Eastwood, opta pela renúncia do turbulento sentimento e da oportunidade de talvez ser tremendamente feliz, pelo amor tranquilo e monótono à família já constituída.

Leda, ao contrário, decidiu viver sua vida, tendo, no processo, que arcar com o peso desta escolha; peso, este, oriundo da sociedade ocidental altamente sexista – que determina papeis sociais bem específicos para os gêneros –, da internalização desse padrão externo e da própria culpa pessoal de haver seguido sua natureza claramente segregadora e egóica (afinal, amar exige sacrifícios e aceitação plena do objeto amado). É preciso expiar o pecado, ressuscitar, nascer de novo, qual num parto, e como uma Vênus saída das espumas das ondas do mar.

No tocante aos aspectos técnicos, o filme tem bom ritmo, apesar de ser possível perceber certa e esperada insegurança na câmera de Gyllenhaal. A fotografia de Hélène Louvart é discreta, quase sem destacar a rica arquitetura grega, mas bastante nítida, servindo ao propósito de uma narrativa tão pessoal. O roteiro é preciso e cirúrgico. A direção de elenco, todavia, é primorosa, haja vista a vasta experiência da diretora como atriz. Com isso, pode-se esperar closes fechados principalmente no rosto das personagens principais, para captar emoção, sutilezas nos olhares e expressões marcantes.

Para os homens, pode ser bem mais difícil entender os dramas colocados no roteiro, também de autoria de Gyllenhaal. Para mim, foi necessário a visão de minha esposa para conseguir compreender melhor o personagem de Leda. Seria mais fácil torná-la muito mais simpática do que o filme a retrata, mas, com isso, perder-se-ia a correspondência com a realidade, na qual somos todos imperfeitos como ela, mas todos tentando amar e ser amados.

Foto: Divulgação (o brilho de uma atriz numa personagem bastante complexa!)

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Nota: 4 / 5 (ótimo)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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