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Críticas

MARIGHELLA | Crítica do Neófito

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Só o simples fato de se assistir ao filme Marighella já é um ato político, haja vista a cruel campanha de cancelamento levada a efeito por grupos de haters da extrema direita contemporânea e, conforme ressaltou a atriz Bella Camero, intérprete da personagem homônima no filme, também em função da “censura” (nada) sutil a que o longa foi submetido “por meio da burocracia” dos órgãos responsáveis por seu lançamento nacional, em especial a Ancine (Agência Nacional do Cinema).

Co-escrito (junto com Felipe Braga) e dirigido por Wagner Moura, em sua primeira incursão por trás das câmeras, Marighella estava previsto para estrear no Brasil em 20 de novembro de 2019 (Dia da Consciência Negra), no que foi frustrado pela mencionada “censura branca” estatal. Com isso, a première nacional passou para 2020, mas, por causa da pandemia, o filme foi novamente adiado, só conseguindo ser lançado agora, em 4 de novembro de 2021, no aniversário de 52 anos do assassinato real do personagem (internacionalmente, o longa já foi exibido no Festival de Berlim de 2019, oportunidade na qual foi ovacionado).

Retomando ao ato político de se assistir ao filme, seu roteiro é baseado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães, e conta um pequeno pedaço da história do personagem homônimo – o poeta, socialista, militante e político baiano-carioca, Carlos Marighella – mais precisamente, seus 4 últimos anos de vida, começando por sua violenta prisão, em maio de 1964, até sua morte, por emboscada, acontecida no dia 4 de novembro de 1969, em pleno AI-5. E isso não é spoiler, pois, trata-se da história pública desse personagem da vida real, chamado de o “Inimigo Número Um do Brasil” pelo opressor regime ditatorial que governou o país de 1964 a 1985.

Foto: Divulgação (a prisão pelo regime ditatorial recém instaurado)

Nesses quatro anos cobertos pelas duas horas e meia de filme – que, no entanto, passam rápidas – o longa propõe a rima visual da liberdade, sugerida pela metáfora do filho de MarighellaCarlinhos Marighella – boiando nas águas do mar, primeiro, criança, em Copacabana, com o apoio do pai; no final, adulto, solitariamente, nas mornas águas da Bahia. A metáfora é bem clara: os atos – algumas vezes radicais e intempestivos – e sacrifícios pessoais de idealistas como Marighella é que conduziram e garantiram que, atualmente, possamos gozar da liberdade de que dispomos. Renunciar a essa conquista seria absoluto contrassenso! E é por isso que é tão chocante ver, nos dias de hoje, tanta gente urrando pela volta de regimes limitadores de direitos e liberdades a usarem, contraditoriamente, a própria palavra ‘liberdade’ para isso (na verdade, uma deturpação do real sentido desse Direito Fundamental, aplicado na consecução de interesses próprios).

E é a partir dessa segunda sequência do filme que Wagner Moura mostra que, para além dos fatos históricos que necessariamente irá retratar, o filme Marighella pretende ser uma ode às conquistas democráticas históricas do mundo moderno, cuja fragilidade, todavia, tem se mostrado muito mais patente do que se poderia esperar. A cena pós-crédito, aliás, é literalmente, um retumbante grito de resgate do patriotismo brasileiro, que teve seus símbolos mais caros – bandeira, cores, hino – sequestrados por um projeto de poder reacionário e destrutivo.

A cena de abertura, no entanto, retrata o assalto que Marighella e alguns integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) – cofundada por ele – promoveram a um trem que transportava armas estatais. Moura filma tudo em plano sequência, como se quisesse demonstrar, logo de início, o domínio cinematográfico que adquiriu em sua vasta experiência como ator de sucesso nacional e internacional, trabalhando com grandes diretores mundiais. A cena é dificílima, pois se passa em tempo real, dentro do trem em movimento; há idas, vindas e cruzamentos simultâneos de vários atores pelos apertados vagões; constante clima de tensão (trata-se de um assalto!); interação com pessoas e veículos exteriores ao trem; tudo em ritmo acelerado, para conferir a sensação de imersão do espectador na ação.

Wagner Moura, aliás, abusando do virtuosismo, dá clara preferência à filmagem estilo câmera na mão, na quase totalidade em planos fechados (exceção das mencionadas cenas nas praias) ou closes (o que privilegia a interpretação dos atores). Além dessa incrível abertura, as cenas de tortura e violência também são, na sua maioria, filmadas com nervosa câmera na mão, em amplas sequências sem cortes, o que causa extremo (e necessário) desconforto na plateia, que se sente dentro daquele cenário, quase numa experiência que poderia ser chamada de empatia cinestésica pela angústia, dor e impotência dos personagens sob tortura; o espectador se sente tão indefeso quanto o violentado.

No quesito interpretação, não há o que se falar. Como experimentado ator de porte internacional, Moura sabe extrair visceralidade dos intérpretes sob seu comando. Seu Jorge, além de nome também conhecido internacionalmente (o que certamente ajuda na divulgação global do filme) é excelente ator, concebendo vasta gama de camadas ao seu Marighella, que vai desde o sisudo combatente e líder da luta armada – repleto de idealismo, convicção, coerência e certa dose de intransigência – quanto ao homem comum, dotado de malandragem, bom humor e pura dor, oriunda da consciência das consequências que seus atos e escolhas provocará, tanto a nível pessoal, quanto na vida das pessoas a quem ama e que tem por companheiros e amigos.

Luiz Carlos Vasconcelos (Almir, ou “O Velho”), Herson Capri (o jornalista e filiado do PCB Jorge Salles, amálgama de vários personagens reais da vida de Marighella), Adriana Esteves (como Clara, a paixão do protagonista) estão, simplesmente, irrepreensíveis. Humberto Carrão interpreta seu revolucionário Humberto de forma apaixonada; da mesma forma de Jorge Paz e seu trágico Jorge e Bella Camero e sua jovem Bella. Até mesmo o Pastor Henrique Vieira, no papel de Frei Henrique (outro personagem-junção de vários outros) se sai surpreendentemente bem na sua estreia como ator. Por último, cabe menção ao jovem Matheus Araújo, no difícil papel de Carlinhos Marighella, filho do protagonista.

Foto: Divulgação (alguns dos atores do filme)

Percebe-se, acima, que Wagner Moura optou por chamar os personagens de vários atores pelos seus próprios nomes, o que denota mais claramente ainda a busca do cineasta em provocar rimas narrativas com o momento atual do país e do mundo. Os atores não apenas interpretam ou representam pessoas reais ou simbólicas, mas ‘vivem eles mesmos’, enquanto seres humanos submetidos às mesmas pressões políticas e contingenciais do passado próximo e do presente; algo, aliás, que se mostrou até meio profético; afinal, quando o longa foi filmado, não dava para saber – apenas suspeitar – dos boicotes que o filme sofreria por parte da máquina pública, cooptada pelo atual governo disfuncional que comanda o país e que se espelha, justamente, no período tão triste da ditadura militar que o filme retrata.

Moura ainda mostra grande domínio da direção de arte, de escolha de figurinos, de reconstrução de época (esplêndida!), de ritmo e da trilha sonora, bem colocada e sutil, marcada por músicas fortes e engajadas, como as dos Racionais MC’s e do Gonzaguinha.

Mas o filme possui alguns pontos fracos, tanto em termos técnicos, quanto em conteúdo.

Tecnicamente, a direção de fotografia de Adrian Teijido, replica o que pode se entender por vícios da filmografia nacional, a saber, a tonalidade dessaturada, quase em tons pasteis, céus quase invariavelmente carregados e acinzentados, numa paleta capaz de fazer com que o Brasil se pareça com a nublada Londres inglesa e não com o país tropical e solar que é.

No quesito conteúdo, apesar da incrível, relevante e bem-vinda crítica proposta por Wagner Moura sobre o passado não resolvido do país com relação ao seu período ditatorial e a absurda atual onda reacionária e autoritária que tem se instalado aqui e outras partes do mundo, pode-se questionar a consciente opção do diretor pelo maniqueísmo absoluto, ao retratar todos os membros do baixo governo (policiais, delegados, forças armadas) quase que como vilões de filme do 007, isto é, sem quaisquer sutilezas ou camadas. Eles simplesmente são ruins, torturadores, sádicos, vis e preconceituosos, algo que contraria a constatação da “banalidade do mal”, observada por Hannah Arendt no julgamento de Adolf Eichmann, um dos nazistas responsáveis pela administração do Holocausto, conforme o livro Eichmann em Jerusalém, de 1961. A grande filósofa descreve que o carrasco nazista, ao contrário do que se poderia esperar, não era alguém de caráter distorcido, disfuncional ou essencialmente perverso; mas, ao contrário, um homem que agia acreditando estar cumprindo seu dever ‘patriótico’, ‘ideológico’ e fazendo ‘o certo’.

Nesse sentido, Moura, ao retratar Marighella e seus companheiros, nunca deixa de mostrar, apesar dos atos questionáveis de alguns – como assassinato e atentado à bomba – o lado humano deles, suas fraquezas, motivações e paixões. Já as cenas que retratam os torturadores se circunscrevem aos seus execráveis e imperdoáveis atos de violência, arrogância e desrespeito humano, sem quaisquer análises sobre as motivações ou demais camadas que pudessem ter. Todavia, se em termos de mensagem, possa-se colocar pequeno “senão” nesta decisão criativa do cineasta, por outro lado, tal opção permite com que Bruno Gagliasso brilhe espantosamente no papel de Lúcio, o delegado responsável pela caça ao grupo de Marighella e que, na verdade, é caricatura do temível e real delegado Sérgio Paranhos Fleury, o legitimo algoz do revolucionário baiano. Basta surgir em tela para o ator despertar asco e repugnância pelo seu personagem. Outro intérprete menos preparado poderia tornar Lúcio em apenas a pura e simples caricatura que ele é, mas Gagliasso confere materialidade ao arquétipo de autoritarismo a que foi escalado dar vida. Simplesmente brilhante!

Foto: Divulgação (amostra da fantástica composição do marido da Ewbank)

Essa abordagem de Moura – além de o resguardar de possíveis ações judiciais por parte das famílias das pessoas reais ali retratadas – denota sua intenção de não personalizar ou nominar o mal. Os policiais – todos brancos, classe média e (aparentemente) héteros – são estereótipos do regime ditatorial e de uma ideologia que ainda persiste, apesar de toda a truculência que a caracteriza.

Foto: Divulgação (o estereótipo de uma mentalidade)

Ou seja, a crítica que se possa fazer a tal escolha do diretor, acaba por se converter em mérito, se bem analisada. Mas pode ajudar na polarização e radicalização, por não fazer concessões ao lado que se quer criticar e, de certa forma, quase santificar a luta armada (ao ponto de se chegar a propor comparação do protagonista do longa ao líder do Cristianismo…).

Por tudo isso – e muito mais – Marighella é um filme essencial, retrato não apenas de um homem diferenciado – às vezes radical, mas sempre coerente – ou de um tempo histórico, mas de toda uma mentalidade que precisa ser superada e combatida, sob pena de, quando menos percebermos, podermos nos ver privados do prosaico ato de tomar banho de mar…

Foto: Divulgação

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Nota: 4,5 / 5 (excelente)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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