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Críticas

DIAS SEM FIM | Crítica do Neófito

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“A escravidão só ensinou o negro a sobreviver, não a viver!”

Essa frase, dita duas vezes no decorrer do filme Dias Sem Fim (All Day and a Night, produção da Netflix), resume muito bem o que se vê na tela, durante os quase 120 minutos do longa.

E, de repente, estamos diante de um jovem preto de aproximadamente 19 anos chamado Jahkor (Ashton Sanders) ensaiando, na solidão de seu carro, alguns versos de rap. Logo em seguida, ele parte para uma região da periferia de Oakland, Califórnia. Desce do carro, passa por algumas cercas, invade uma casa, sobe as escadas até os quartos, engatilha duas semiautomáticas e, quando chega a dona da casa com seu namorado Malcolm (Stephen Barrington) dispara a queima-roupa contra o casal, na frente da filha de 10 anos da mulher.

 Foto: Divulgação

Um assassinato frio, calculado, sem qualquer empatia ou remorso! E isso fica bem claro quando, em pleno julgamento, a mãe da mulher assassinada questiona a Jahkor o porquê do crime, ao que ele não esboça qualquer reação. Em seu pensamento, o criminoso reflete que as pessoas não querem saber o verdadeiro porquê, mas apenas desejam uma resposta simples, o que não existiria…

Não vou contar mais nada da história, para deixar que o espectador possa, sem qualquer antecipação, mergulhar no passado de Jahkor (interpretado na infância pelo ótimo Jalyn Hall) descobrindo a complexidade da resposta que aquela mulher lhe formulou. E não que isso vá desculpá-lo pelo que fez. Naquele mundo da negritude, não parece haver espaço para redenção.

Foto: Divulgação

Um amigo meu – branco, bem nutrido e corado – costuma dizer, até com certa impaciência, que “esse papo de dívida social para com os pretos não existe”!

Acho que seria interessante, então, perguntar para um preto por que eles sempre voltam ao tema, não é verdade? Se minha avó paterna – preta e bela – ainda estivesse viva, teria o prazer de perguntar a ela!

Mesmo aqueles pretos que, pelo olhar social, alcançaram o sucesso – como o diretor e roteirista do filme, Joe Robert Cole (que escreveu o roteiro de Pantera Negra) ou o ator Jeffrey Wright (o Bernard de Westworld), que interpreta de forma magnetizante, “JD”, pai de Jahkor, numa atuação completamente “fora da caixinha” – e, portanto, teriam superado o suposto estigma discriminatório, sempre que têm oportunidade, retornam ao tema da negritude, do diferente olhar que a sociedade volta para quem não é branco, hétero, cristão (formalmente), do abismo socioeconômico vigente entre pretos e brancos e temas correlatos. Por que isso, se não há qualquer dívida social, por conseguinte, qualquer diferença de oportunidades?

Foto: Divulgação

Porque, na escravidão, o preto aprendeu a sobreviver e não a viver! Mesmo o bem sucedido!

E porque quem vê a violência regularmente acaba se acostumando a ela! (outra frase do filme)

A esperança de uma vida efetivamente melhor é quase uma maldição para os personagens do filme.

Jahkor  se recusa a traficar drogas – o que levou seu pai ao crime e à autodestruição – mas se permite cometer assaltos à mão armada e algum vandalismo, enquanto grava de forma doméstica rap’s e rimas variadas, fuma maconha sempre que pode, tem uma namorada fixa e algumas peguetes por fora. A música seria uma saída daquele mundo, a concretização do american dream em sua vida.

Mas a realidade é dura. Andar de carro no bairro de brancos é motivo para ser detido pela polícia. Trabalhar numa loja de sapatos pode espantar clientes mais seletivos! O amigo Lamark (Christopher Meyer), outro sonhador, capaz de entrar para o exército em nome de uma causa e da esperança de “sair dali” – o american way of life – também descobre como é efêmero o sonho do preto, que parece ter que se esforçar dez vezes mais do que todo o resto das pessoas para conseguir muito menos, desde que opte pelo caminho da honestidade.

Talvez fosse melhor aceitar o discurso que varia do hedonismo ao niilismo do outro amigo, TQ (Isaiah John), e mergulhar de cabeça no crime para ter um carrão, uma tv 4K com jogos de última geração e dinheiro no bolso. Ou quem sabe a estratégia seja fingir que haja um caminho lícito na música, mas apenas para acobertar o trabalho como traficante, aos moldes do que faz Thug’ish “T-rex” (James Earl)?

Foto: Divulgação

O fato é que, muito cedo, Jahkor vê sua vida acabada, condenado à prisão perpétua antes dos 20 anos e de ver o filho nascer. De certa forma, a presença de Jeffrey Wright remete a Westworld, tanto pelo fato dele ser um dos personagens principais da série televisiva, quanto pelo tema abordado principalmente na recém terminada terceira temporada, na qual a vida das pessoas outsiders estaria total e completamente definida por uma Inteligência Artificial, capaz de prever com precisão até o dia em que alguém cometeria suicídio, de modo a definir até onde ela poderia ir na escala social.

Os pretos de Dias Sem Fim parecem fadados a uma narrativa predefinida – como as dos anfitriões de Westworld – tamanho o peso que parecem carregar logo na saída da corrida. Não há uma empresa ou uma I.A. determinando a história de ninguém! É o próprio racismo estrutural a própria construção sociocultural que se encarrega disso. Seria preciso uma rebelião aos moldes do que Dolores fez na série supramencionada para que alterar aquela realidade.

Foto: divulgação

Na verdade, Dias Sem Fim integra a interessante linha de filmes que giram em torno da realidade dos pretos norte-americanos – como o excepcional Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) – mas que fogem do estereótipo do quase caricatural do Blaxploitation da década de 70, para investir em histórias a partir de uma ótica séria, lírica e reflexiva, ampliando a compreensão deste universo preto que vive bem aqui, ao nosso lado.

E assim, mesmo com toda a desesperança trágica que o filme passa em quase toda a sua totalidade – não amenizando para nenhum personagem: todos são verdadeiramente culpados por suas escolhas, o que induz a pensar que, apesar de tudo, poderiam ter agido de forma diferente – há sempre que confiar que uma próxima geração possa trazer coisas novas. Talvez seja melhor falar das escolhas erradas do que se ocultar na vida invisível da conformação do destino atroz (simbolizada pelo presídio, em que pai e filho vão se reencontrar). Talvez seja preciso reinvestir esforços para que a história não se repita. Se o avô foi traficante e assassino e o filho apenas assassino, talvez o neto possa não ser nenhuma das duas coisas…

Foto: Divulgação

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Nota: 4 / 5 (ótimo)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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