Críticas
VOCÊ NEM IMAGINA | Crítica do Neófito
Afinal de contas, o que é o amor?
Ganha um doce quem conseguir responder a essa pergunta, que, ao contrário do que se possa pensar, não é objeto de questionamento apenas de poetas e românticos, mas ocupou boa parte do pensamento filosófico ao longo dos tempos, como fica demonstrado no livro “Como a Filosofia Pode Explicar o Amor” do filósofo brasileiro, Paulo Ghiraldelli Jr, escritor para quem muita gente torce o nariz, em razão de sua explícita inclinação a um pensamento “de esquerda”.
Todavia, o que Ghiradelli Jr. faz nessa obra não tem absolutamente nada a ver com política! Ele apenas apresenta um retrato do amor, desde Platão, passando pelo Cristianismo, até chegar à nossa época atual, em que relações afetivas são quase tão descartáveis quanto um chiclete mascado.
Você Nem Imagina (The Half of It) integra aquele rol de produções mais modestas e facilmente consumíveis da Netflix, típico produto feito com o objetivo exclusivo de aumentar o já vasto menu de opções da plataforma de streaming. Mas busca, em alguma medida, contribuir para esta séria discussão!
Trata-se de um filme de drama híbrido, que se utiliza do formato e de algumas fórmulas típicas da comédia romântica adolescente com a meta de fisgar o público para a temática que realmente importa para sua realizadora – a diretora norte-americana Alice Wu (Livrando a Cara, de 2004) – que é a homossexualidade feminina e a condição dos imigrantes chineses nos Estados Unidos da América, dois temas que tocam muito de perto a cineasta, gay militante, e que lidou na própria pele com o fato de sua família ser oriunda de Taiwan.
De fato, a inadaptação do pai da protagonista, Edwin Chiu (Collin Chou, sensível) – um chinês doutor em engenharia reduzido à controlador de uma parada de trem na fictícia obscura cidade de Squahamish, por não conseguir aprender inglês – parece refletir a realidade de muitos imigrantes – chineses ou não – que aportam nos EUA na esperança de uma vida melhor. Não conseguir – ou não querer – falar inglês pode representar um último grito de desespero para não perder de vez todo o contato com suas raízes socioculturais, deixadas para trás no momento em que se sai de sua cidade, país, costumes e idioma para embarcar na aventura do “american dream”.
(cabe aqui um parêntesis para o fantástico trabalho cenográfico da equipe de arte do filme, que realmente criou a sensação de estarmos assistindo a uma verdadeira cidade do norte estadunidense – que lembra a Twin Peaks, de David Linch – ao passo que todas locações foram obtidas ao redor de Nova Iorque, como revela os site The Cinemaholic)
Foto: Divulgação
Tendo que lidar, ainda, com a morte repentina da ‘solar’ mãe, a protagonista, Ellie Chiu (Leah Lewis), uma garota chino-americana de compleição comum, praticamente genial e extremamente responsável, vive uma auto infligida sina de Marvin (da famosa canção homônima dos Titãs), renunciando à própria vida, sonhos e aspirações em nome das obrigações e dos cuidados do deprimido pai. Na dupla via de arrecadar alguns trocados a mais e de dar vazão ao seu talento para as letras, Ellie se dedica a ser ghost writer das redações de filosofia de seus “colegas” de escola, principalmente do ‘popular’ Trig Carson (Wolfgang Novogratz), um verdadeiro arquétipo do macho-alfa: belo, branco, alto, esportista, hétero e incrivelmente vaidoso. Não por acaso, Trig namora a mais bonita menina da escola, a corretíssima e popular filha do pastor da cidade, Aster Flores (vivida pela belíssima atriz Alexxis Lemire), que também é objeto de culto afetivo do ‘ogro-humano’ Paul Munsky (Daniel Diemer), o qual contrata Ellie para um serviço algo pouco diferente do usual: escrever cartas de amor para conquistar sua paixão romântica.
Foto: Divulgação
O que começa com um contrato, acaba evoluindo para uma sincera amizade entre o salsicheiro Paul e a erudita Ellie, que ainda por cima acaba, no processo de redação das cartas, desenvolvendo uma avassaladora paixão por Aster, que, apesar de corretamente desempenhar o papel social da popular namorada do sujeito mais descolado da localidade, já dava claras mostras de questionar todo aquele sistema, inclusive a fé de sua família.
Foto: Divulgação
Muitas das críticas feitas a Você Nem Imagina encontradas por aí costumam levantar o fato de que o filme toca em várias questões bacanas, mas não desenvolve praticamente nenhuma. Assim, o questionamento da fé – tão importante para os norte-americanos quanto para aquela fictícia comunidade – não passa de um ou dois comentários en passant. A inspiração no clássico Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, não é aprofundado ou explicitado. O problema migratório teria sido apenas sugerido etc.
Mas analisar a obra por esse prisma é criticá-la por aquilo que ela poderia ter sido e não pelo que ela é!
E o que ela é?
Uma sensível história de amor, esse sentimento tão desejado e complicado.
Alice Wu claramente quis mostrar que o amor homossexual é igual a qualquer outro, mesmo que evidentemente possam surgir alguns agravantes, afinal, se o objeto do amor possuir orientação sexual efetivamente diversa (hétero), a concretização física deste afeto se torna bem mais complicada (algo também desenvolvido nas terceira e quarta temporadas de La Casa de Papel, entre o personagem Palermo, apaixonado por Berlim; e na série Merli, em que o jovem filho do protagonista, Bruno ama o colega hétero Pol).
Foto: Divulgação
A diretora também – como já dito – utiliza-se de algumas fórmulas do gênero comédia romântica adolescente para tornar mais palatável sua história, realmente envolvente, mas que toca no tema da homossexualidade, que infelizmente ainda é tabu para grande parte das pessoas.
De modo que o filme cumpre muito bem o seu papel: transporta seu espectador para um mundo especialmente construído para conferir a atmosfera exata que se queria passar de isolamento e de se ‘estar à margem’; desenvolver, por bons e dedicados atores, personagens muito mais comuns, ainda que alguns deles sejam clara e propositalmente estereótipos (à exceção quase exclusiva de Ellie e Aster); contar uma história de amor romântico e fraternal (a cena final entre Paul e Ellie na estação de trem – que pode ter inspiração em O Segredo de Seus Olhos – é realmente tocante e mais significativa que a resolução do caso entre esta e Aster); retratar uma realidade às vezes dura, mas com alguma sinalização esperançosa.
Ao terminar o filme, fica-se com uma sensação gostosa no peito; nada muito extraordinário, dramático ou super engraçado. Apenas uma sensação boa de que se assistiu uma obra que, apesar de suas limitações, consegue envolver e capturar a atenção, a ponto de que nos esqueçamos de seus também claros defeitos.
Uma boa pedida para um domingo à noite!
Foto: Divulgação
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Nota: 3,5 / 5 (muito bom)
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