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Críticas

SÉRGIO | Crítica (tardia) do Neófito

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É de conhecimento geral de que foi o grande Nelson Rodrigues o responsável pelo diagnóstico do famoso “complexo de vira-latas” do brasileiro e sua tradicional capacidade de não se valorizar.

Quem não viveu os tempos de um Ayrton Senna “do Brasil” pode não entender o fascínio que aquele extraordinário piloto “mauricinho” exercia sobre o imaginário nacional, capaz de fazer com que muita gente acordasse cedo no domingo para vê-lo dar 60 voltas numa pista ao redor do mundo, literalmente “indo pra galera” ao ganhar um grande prêmio em terras tupiniquins, ou vendo Tina Turner, ao vivo, cantar para ele a canção Simply the Best!

 Foto: Divulgação

Pode parecer bobagem, mas dava um orgulho de ser brasileiro!

Todavia, sem grande repercussão na mídia ou reconhecimento público, o Brasil também possui outros “heróis”, que atuam nos bastidores, sem muito alarde, mas sendo dignos de um respeito inquestionável ao redor do mundo. Miguel Nicolelis, por exemplo, é uma autoridade internacionalmente reconhecida no campo da neurociência, com enormes possibilidades de que seja o responsável pela invenção do primeiro método eficaz que devolva mobilidade para os tetra e paraplégicos do mundo.

Mas há aqueles mais anônimos ainda, sobre cujos ombros recai o mérito, por exemplo, de haverem contribuído para a independência de um país soberano, como no caso do Timor-Leste, há exatos 18 anos e nome praticamente certo para ocupar o cargo de Secretário-Geral da ONU.

Trata-se de Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos da ONU, filósofo e diplomata brasileiro, que, aos 55 anos de idade, em agosto de 2003, foi morto num atentado à bomba à improvisada sede da ONU de Bagdá, patrocinado pelo Al Quaeda, durante a ocupação norte-americana no Iraque, logo após a queda de Saddam Hussein.

A alcunha de “herói” pode dar uma ideia errada sobre Sérgio Vieira de Mello. Ele não era um homem perfeito ou um grande humanista. Ao contrário, era uma pessoa ambiciosa, capaz de colocar a carreira na frente da família, de se envolver em casos extraconjugais e vaidoso.

Mas, até aí, Ayrton Senna – citado acima como paradigma de orgulho nacional – também não era conhecido pela humildade ou temperamento fácil.

O diferencial desses homens notáveis – talvez essa seja a expressão que melhor os qualifique – é que eles, apesar de suas falhas de caráter, sabiam entregar algo de relevante não apenas para si mesmos, mas para um grande número de pessoas ao redor, realizando seu trabalho de forma competente, assumindo os riscos e se responsabilizando por suas ações.

Enquanto Ayrton Senna, que apesar dos diversos rumores e tentativas de realização de um filme romanceado sobre sua vida, só teve até agora um longo documentário produzido e lançado em 2010 – Senna: O Brasileiro, O Herói, O Campeão (direção de Asif Kapadia) – o ex-funcionário da ONU, Sérgio Vieira de Mello, ganhou, no início deste ano – além de um também documentário, datado de 2009 – um longa-metragem homônimo – Sérgio – sobre sua trágica e violenta morte e últimos anos de vida, produzido pela plataforma de streaming Netflix, dirigido por Greg Barker (também diretor do citado documentário), roteirizado pelo premiado Craig Borten (Clube de Compras Dallas), estrelado pela lindíssima e cada vez mais badalada atriz cubana, Ana de Armas (no papel da argentina Carolina Larierra, amante e esposa ‘post mortem’ de Sérgio Vieira) e pelo magnético Wagner Moura, produtor do filme e outro brasileiro notável em termos de reconhecimento internacional (que parece ser o parâmetro do ‘viralatismo’ nacional para o sucesso).

Foto: Divulgação

O filme inicia mostrando os momentos que imediatamente se seguiram à explosão do carro bomba na sede da ONU, fato facilitado, segundo o longa, pela própria ordem de “Sérgio de Mello” (como era mais comumente chamado) de diminuir a segurança do prédio com o objetivo de desvincular a imagem da ONU da invasão estadunidense ao Iraque, facilitando, quem sabe, o diálogo entre as forças em conflito; perpassa, assim, ainda que levemente, pela crítica aos problemas da autonomia e independência do órgão mundial face à superpotência (e prepotência) norte-americana; faz vários retornos a diferentes momentos do passado do personagem título; e dá grande foco ao seu relacionamento com Carolina Larierra.

Foto: Divulgação

Desse modo, apesar de tocar em assuntos complexos, importantes e relevantes da política internacional, dos questionáveis métodos e motivações dos EUA para sua combativa e militarizada política externa, dos problemas estruturais que alguns países menos afortunados enfrentam, o filme Sérgio se foca mesmo na pessoa de Sérgio Vieira de Mello, pintando-o com cores muitas vezes excessivamente romantizadas, como se fosse um arquétipo de ser humano correto e íntegro, até nos momentos mais difíceis. Mesmo quando discorre sobre suas falhas como pai – desconhecedor da alergia do filho a frutos do mar – a sequência é logo seguida com tomadas do rosto claramente carregado pelo peso consciencial do personagem e mais adiante, mostra-se o mesmo ligando amorosamente para os filhos. Sua ambição de alcançar o posto máximo na ONU sempre é apresentada na forma de um enorme senso de responsabilidade ou de um altruísmo incondicional; seus erros logísticos são amenizados pelo discurso universalista e, mesmo sem qualquer julgamento moral, seu adultério é justificado pelo imenso amor por Carolina.

Foto: Divulgação (em preto e branco: o verdadeiro Sérgio Vieira de Mello em interações políticas; em cores: cenas do filme)

Com isso, perde-se a dimensão mais real de Sérgio Vieira de Mello, ficando-se com um modelo quase irrepreensível de ser humano, algo que também acontece, em menor grau, com a Carolina Larierra de Ana de Armas, que, além de ativista vocacionada e mulher apaixonada e apaixonante, parece ser incapaz de errar no trabalho. Em verdade, a maioria dos personagens apresentados brevemente no filme soam meio estereotipados, talvez pela inexperiência de Barker à frente de filmes ficcionais.

Outro problema do filme é a longa sequência final de morte de Sérgio (que não é SPOILER, correto?), a qual também opta por uma abordagem extremamente lírica, ao passo que a realidade era muito dura. De fato, a sequência percorre todo o filme, mas o fechamento dela é que se estende para um pouco a mais do que o ideal.

Apesar desse provável erro de premissa com relação à construção de personagens e ao enfoque mais lúdico da trama e da vida do personagem principal – talvez para se contrapor ao tom mais seco e realista do documentário de 2009 – o filme da Netflix é realmente bom, envolvendo o espectador e contando uma história verdadeiramente interessante.

Além disso, a química entre os protagonistas é ótima, a cenografia é irrepreensível, as locações são belíssimas e a fotografia – de início cinzenta e nebulosa e solar ao final – muito adequada ao clima e ambientação do filme.

Foto: Divulgação

Poder-se-ia esperar mais realismo e criticismo de um filme dessa ordem, principalmente estrelado por um ator reconhecidamente militante de um pensamento político mais à esquerda, como Wagner Moura, e pelo engajado diretor Greg Barker, marcado pela filmografia política e crítica, mas isso seria, novamente, comentar o que se desejava ver e não o que se viu.

Desse modo, Sérgio cumpre bem o seu papel de entreter, ao mesmo tempo que aponta para algumas questões de fundo relevantes. Falta ainda intensidade emocional a Barker na condução de uma obra não documental, mas ele mostra potencial.

Quanto a Wagner Moura e Ana de Armas, pouco se tem a dizer sobre atores tão competentes.

Foto: Divulgação

Em termos históricos, a morte de Sérgio Vieira de Mello causou uma mudança no modo de ação da ONU, que para alguns analistas representou um recuo a mais na importância de seu papel no cenário mundial.

Por fim, para o brasileiro, o filme deixa a sensação de que o país perdeu mais um de seus importantes representantes. Um homem comum, cheio de falhas, mas capaz de entender a importância de se não ficar parado diante das necessidades que se apresentam, sejam elas domésticas ou mundiais.

Mas é fundamental lembrar que, nesses tempos de pandemia, os verdadeiros notáveis do país se encontram escondidos nas UTI’s dos SUS, lutando na linha de frente contra essa mórbida doença que, de uma hora para outra, fez o planeta parar.

Fica, aqui, nossa homenagem a todos esses brasileiros.

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Nota: 3 / 5 (bom)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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