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Críticas

IDENTIDADE – O “espinho na carne” do racismo | Crítica do Neófito

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Desde janeiro de 1896, quando os Irmãos Lumière exibiram A Chegada de um Trem na Estação, provocando pânico nos espectadores virgens de experiências cinematográficas daquela ordem, o cinema passou a ser primordialmente encarado como fonte de entretenimento.

Logicamente, a sétima arte não ficou confinada somente a tal perspectiva. Cineastas como Eisenstein, Fritz Lang, Charles Chaplin, entre outros, demonstraram que, ainda que o cinema sempre busque impressionar os olhos da plateia com imagens e mundos somente possíveis por seu intermédio, ele pode, concomitantemente, fazer pensar e estimular o senso crítico de quem paga o ingresso.

Mesmo diante de alguns experimentalismos radicais – como algumas coisas do Expressionismo Alemão, filmes como Saló ou os 120 Dias de Sodoma (1976), de Pasolini, ou o mais recente O Albergue (2005), de Eli Roth, cujo objetivo essencial é chocar a audiência – o sonho de nove entre dez cineastas continua sendo a busca pela capacidade de contar histórias por meio da imagética que encante o público. Uns, logicamente, dando mais ênfase à mensagem, outros à forma, dependendo da quantidade de recursos disponíveis, do nível de independência da produção ou da interferência dos financiadores da obra cinematográfica.

Tal desafio é o que torna o cinema tão fascinante e complexo, capaz de oferecer obras tão díspares como Sucker Punch: Mundo Surreal (2012), de Zack Snyder, puro desbunde visual estético e zero de conteúdo; ou o muito justamente premiado Parasita (2019), de Bong Joon-ho, pensado nos mínimos detalhes para que cada quadro contribua para a transmissão da crítica embutida na história ali contada.

Isso nos traz para esse já supercandidato ao próximo Oscar, a produção da Netflix que marca a estreia da então atriz Rebecca Hall no comando da claquete: o denso, belo e incômodo filme Identidade (Passing, ou “passagem”/“falecimento”), estrelado por Tessa Thompson e Ruth Negga.

Thompson vive Irene Redfield, negra norte-americana, moradora do Harlem, ativista de causas raciais, esposa de bem-sucedido médico da comunidade afrodescendente novaiorquina, o que lhe garante a típica vida de dona-de-casa da classe média dos anos 1920 (com direito a empregada preta). Porém, em razão de motivos não esclarecidos – mas certamente devido à miscigenação racial – Irene (ou “Reenie”, para os mais chegados) – nasceu com traços “de branco” e cor de pele mais clara, o que lhe garante acesso a certos nichos da sociedade – impossíveis, por exemplo, a seu marido e filhos – mas desde que aceite se passar por uma mulher branca.

Numa dessas incursões pelo centro de Nova Iorque, à procura de um livro para seu filho, Irene se depara com sua antiga amiga de escola, Clare Bellew (personagem de Ruth Negga) que, apesar de também oriunda de família negra, foi outra que nasceu com a “sorte” de ter pele e cabelos claros. No entanto, ao contrário de Irene, evidentemente constrangida por negar sua origem racial, Clare assumiu socialmente a persona de ‘mulher branca’, conseguindo, no processo, o chamado bom casamento, além de status social privilegiado, ainda que, no íntimo, pareça se ressentir de suas escolhas e do afastamento de suas raízes.

O envolvimento afetivo e sutilmente erótico – e ao mesmo tempo tremendamente tenso – entre as duas mulheres é a linha central dessa história algumas vezes enigmática, mas sempre elegantemente crítica, que Rebecca Hall, como mulher – ainda que branca – dispôs-se a contar de maneira incrivelmente competente.

Foto: Divulgação (estreia de peso na direção da atriz Rebecca Hall)

Para tanto, a escolha da belíssima fotografia em preto e branco – a cargo de Eduard Grau – foi estupendamente acertada, pelo simbolismo inerente a ela com relação à história, afinal, as atrizes Tessa Thompson e Ruth Negga, lindas pretas de traços marcantes, no preto-e-branco acabam ficando com pele indistinguível da dos ‘brancos’. A negritude de Thompson, todavia, é perfeitamente perceptível por meio de seus lábios para lá de carnudos, assim como Negga ostenta os traços característicos dos descendentes africanos em sua expressão. Ou seja, por mais que, por fora, as duas personagens consigam disfarçar sua origem, a alma continua preta, ligada profundamente às raízes ancestrais desse povo sofrido e tão historicamente explorado.

Foto: Divulgação (a verdadeira “vida em preto e branco”)

É importante ressaltar que, nos EUA, a questão racial vai para além da “simples” aparência, estando relacionada à descendência e à genealogia. A questão levantada no romance nacional A Escrava Isaura (Bernardo Guimarães), isto é, a moça “branca”, porém, filha de escravos e, portanto, também escrava, é fato sociológico na Terra do Tio Sam, ainda hoje.

Pessoalmente, minha avó paterna era negra, enquanto meu avô era branco. Com isso, os filhos saíram com cor de pele bastante variada, alguns bem negros, outros menos. Meu pai foi “agraciado” com a cútis mais esbranquiçada da família, o que permitiu – junto com o fato de falar o inglês sem qualquer sotaque – que conseguisse construir uma vida para si nos EUA, sem o estigma de ser encarado como “niger” ou “latino” (pelo menos, na maior parte do tempo). Contudo, mesmo tendo se casado com a típica loira norte-americana de olhos claros, seus dois filhos – meus irmãos – resgataram a genética preta, nascendo com peles acobreadas e, portanto, tendo que, em certa medida, enfrentar um pouco do preconceito racial enraizado naquela cultura, mesmo sendo norte-americanos natos!

O relato pessoal acima busca somente aclarar a dinâmica e a tensão sutilmente colocada em Identidade, cuja questão racial é fundamental. A autoaculturação a que muitos pretos (não apenas) norte-americanos se submetem – que atualmente tem ganhado destaque na fala de pretos paradoxalmente racistas, os quais chamam as pautas progressista-raciais de “mimimi” ou de “ditatura do politicamente correto” – é mostrada no filme por meio dos conflitos entre Irene e Clare. De certo modo, ambas negam e ao mesmo tempo não têm como fugir da ligação profunda e inerente que possuem com suas origens. Irene, apesar de fazer bailes e eventos para a comunidade negra, expressar desejo de até mudar de país para fugir da opressão racial, vive tal qual as ‘madames’ brancas, interage com intelectuais brancos, evita comentar eventos de racismo patológico com os filhos e, sempre que necessário, finge ser branca. Já Clare, apesar de ter conquistado todo o “sucesso” possível a uma mulher da década de 1920, graças à negação de sua origem, anseia desesperadamente por se reconectar a suas raízes, arriscando-se cada vez mais em incursões pelo Harlem e na vida de Irene.

Foto: Divulgação (é um ‘momento’ ou é ‘pose’ para a foto?)

A tensão erótica que se estabelece entre as duas mulheres também é acertadamente retratada pela diretora estreante, desenvolvendo-se por meio de sinais sutis de atração, rejeição e provável infidelidade conjugal, nunca totalmente explicitadas no roteiro meio “machadiano” (evocando Dom Casmurro), de forma que o espectador crie sua própria versão dos fatos, incluindo a metáfora da imagem constantemente desfocada de Irene; a rachadura no teto do quarto do casal Redfield; e o acontecimento final – anunciado no título em inglês – recoberto de ambiguidade e significado.

Foto: Divulgação (é possível ascender socialmente acima da própria cor da pele?)

Pode-se dizer que Identidade é obra cinematográfica que flerta com a arte impressionista, à qual retrata momentos fugidios que, nas pinturas, ficam cada vez mais indistintos quanto mais se se aproxime da tela. De modo que o ideal é se afastar para ver o cenário geral e compreender bem a mensagem que se quis passar por meio dos frames cinematográficos.

Com impecável reconstrução de época, bela trilha sonora formada pelo nascente jazz e elenco de apoio afiado – André Holland e Alexander Skarsgård, respectivamente como os maridos de Irene e Clare, Brian Redfield e John Bellew; e Bill Camp, em pequena e marcante participação como o escritor Hugh Wentworth Identidade se destaca como produção ao mesmo tempo esteticamente bonita, formalmente ousada e de conteúdo crítico e relevante. Talvez o ritmo mais lento possa espantar o grande público, mas quem der chance ao filme pode experienciar algo bastante impactante, sentindo no próprio corpo o incômodo e indistinto “espinho na carne” do racismo estrutural que ainda habita no coração da maioria de nós.

Foto: Divulgação (lágrima não tem cor)

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Nota: 4,5 / 5 (excelente)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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