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Críticas

O LEGADO DE JÚPITER S01 | Crítica do Neófito

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As histórias de super-heróis – a princípio restritas às HQs – podem ser de vários tipos.

Existem aquelas que só visam ao entretenimento, tanto pelo viés da comédia (Deadpool, a Liga da Justiça Internacional de Keith Giffen e JM DeMatteis etc.), quanto pelo drama (Saga da Fênix, A Queda do Morcego etc.).

Há aquelas que almejam aprofundar a mitologia do herói, destacando-se enredos clássicos como Para o Homem que Tem Tudo (Alan Moore e Dave Gibbons), A Queda de Murdock (Frank Miller e David Mazzucchelli), Piada Mortal (Alan Moore e Brian Bolland).

E há aquelas que usam o universo dos super-heróis como metáfora destinada a filosofar e criticar sistemas, governos, políticas, preconceitos e coisas similares. Nesse campo, não há como não citar o primeiro Cavaleiro das Trevas (Frank Miller), Elektra (Frank Miller e Bill Sienckiewicz), V de Vingança (Alan Moore e David Lloyd) e, logicamente, aquela que melhor realizou tal propósito, a incomparável Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons, mais uma vez).

Logicamente, a lista acima é arbitrária, pessoal e meramente exemplificativa. Mas é interessante notar que esses vieses também foram, pouco a pouco, transpostos para o live action, que abraçou de vez o universo super-heroístico como fonte de inspiração criativa (bastante lucrativa, aliás).

As séries da CW – braço televisivo dos personagens da DC Comics – por exemplo, se encaixam melhor no quesito entretenimento, com produções destinadas ao escapismo, às aventuras e tramas mais simples e infantis. Mas o mesmo pode ser dito de muitas das grandes produções cinematográficas do MCU ou do Universo Estendido DC, às quais evitam tocar em temas muito sensíveis ou polêmicos, haja vista o enorme investimento de cada filme-produto e a necessidade de retorno. Talvez Guerra Civil, com a questão política, e Guerra Infinita, com seu Thanos ecoterrorista-cósmico, sejam os mais ousados filmes do MCU, em termos de discutir algo a mais. A série Falcão e Soldado Invernal chegou bem perto de levantar questões políticas relevantíssimas, mas o último episódio pisou fundo no freio, optando pela vitória do ufanismo estadunidense (veja a crítica do Dom Giovanni aqui).

Quando a Netflix transpôs para a telinha as séries do Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage e Justiceiro (Punho de Ferro não conta, de tão ruim!), as tramas falaram de racismo, dependência química e outros temas pesados, muitas vezes mascarados de elementos fantásticos. Os dois primeiros filmes dos X-Men, no entanto, são os mais emblemáticos em termos de metáfora crítica: troque-se poderes mutantes por homossexualidade e tem-se uma discussão muito boa sobre o tema da aceitação e do progressismo.

Porém, quando surge no mercado algo como The Boys, a coisa muda de figura. Super-heróis completamente cinzas – quando não totalmente maléficos – que têm taras, vícios, vaidade extremada, ambição desmedida, desprezo pelos mais fracos e completa falta de caráter. A série (em quadrinhos e na telinha), voltada para adultos, visa fazer uma autocrítica do gênero super-heróis pelo caminho da sátira. O humor escatológico e a violência gráfica servem para mostrar o quanto seria absurda a existência real de criaturas capazes de esmagarem um crânio humano com os dedos. Busca-se, portanto, uma espécie de entretenimento crítico.

Toda essa conversa ajuda na compreensão da nova série de super-heróis que a Netflix desenvolveu a partir do universo concebido pelo roteirista de quadrinhos Mark Millar, o chamado Millarworld ou Millarverse.

Após a perda dos direitos sobre os heróis urbanos da Marvel, a famosa plataforma de streaming resolveu investir nas criações de Millar que, com certeza, figura entre os 3 melhores escritores de HQs em ação na atualidade, cujos enredos servem de base para várias adaptações em outras mídias, seja de forma direta (Kick-Ass, The Kingsman) ou indireta (Os Vingadores, Logan). Como primeiro fruto dessa parceria surge O Legado de Júpiter, adaptação em live action da HQ homônima, escrita por Millar e desenhada pelo fantástico Frank Quitely, em 2013.

Foto: Divulgação

Mal estreou, porém, a série televisiva virou objeto de polêmica, duramente avaliada pelos críticos, que só deram 36% de aprovação para a produção, segundo o Rotten Tomatoes, apesar dos 74% de avaliações positivas do grande público.

Quais seriam os motivos desta pontuação tão negativa por parte da critica especializada?

A princípio, surge a comparação de O Legado de Júpiter com The Boys, algo, na verdade, inevitável e ao mesmo tempo injusto.

Inevitável porque as duas produções se destinam ao público adulto, envolvendo super-seres bastante humanizados, envoltos em conflitos familiares, afetivos, sexuais, de dependência química e outras coisas. E injusto porque, afinal, enquanto The Boys busca desconstruir o próprio conceito de super-heróis, O Legado de Júpiter se destina a aprofundar tal mitologia. Ambos os programas questionam a existência “real” de criaturas superpoderosas em meio a humanos comuns, mas o fazem por lentes absolutamente diferentes.

Garth Ennis (criador de The Boys) claramente não gosta de super-heróis e de toda lógica e ética que os envolve; enquanto Millar demonstra devoção profunda àqueles, por mais que entenda a necessidade de atualizá-los para um mundo menos bidimensional e ao mesmo tempo paradoxalmente tão polarizado.

Foto: Divulgação

Assim, ao se ler a HQ O Legado de Júpiter, tem-se a forte impressão de se estar diante de uma releitura pé-no-chão do Superman (Utópico é explicitamente inspirado no Homem de Aço), da Liga da Justiça (o cerne de O Reino do Amanhã é quase plagiado), e do Quarteto Fantástico (a família disfuncional de super-heróis). Tudo, porém, muito reverente, na linha de Stan Lee (uma inspiração confessa de Millar). A versão live action tentou emular esse espírito da HQ, mas esbarrou nas próprias ambições.

Nos moldes de The Witcher, a Netflix optou pela narrativa em duas linhas temporais: uma os dias atuais, na qual se mostram os problemas da antiga geração de super-heróis diante dos desafios do novo mundo e dos novos heróis e vilões, mais selvagens, agressivos e mortais, com reflexo na vida pessoal de todos os envolvidos; e outra no ano de 1929, em plena Grande Recessão, que acompanha a saga para a conquista dos poderes daquela primeira geração de super-seres.

Com isso, enquanto a HQ é quase excessivamente veloz no desenrolar de suas tramas centrais e secundárias, a série televisiva estica demais o subtexto da origem dos seis fundadores da União de heróis, criando dramas desnecessários e alongando tudo para um pouco além da conta. Afinal, no presente, sabe-se que os heróis ou estão presente ou têm seus feitos narrados, soando como apenas enrolação as muitas dificuldades e aparentes riscos que eles enfrentam antes de ganharem seus poderes.

Outro problema está na caracterização dos personagens. Na HQ, Millar não precisou se aprofundar na personalidade de cada super-herói ou supervilão, recorrendo propositalmente a clichês, como o do jovem rebelde, o da garota problema, o do pai ausente e moralmente inflexível e por aí vai. Com o detalhe de que todos são invulneráveis, voam, tem superforça, supervelocidade, leem mentes etc. e tal. Se nos quadrinhos isso funciona a contento, no live action cria-se uma artificialidade nos personagens. Por exemplo, Sheldon Sampson, o futuro Utópico (interpretado com dedicação por Josh Duhamel), em sua versão jovem nas décadas de 1920-1930 é bem mais complexo e interessante do que sua versão envelhecida e intransigente. Nem parece ser o mesmo personagem. O mesmo ocorre com seu irmão, Walter Sampson, o futuro Onda-Cerebral (vivido por Ben Daniels) que em 1929 é um empresário experiente, agressivo, um típico irmão mais velho tentando provar seu valor e nitidamente passional, enquanto sua versão mais velha é submissa, fria e calculista. Leslie Bibb (que dá vida a Grace Sampson/Lady Liberdade) também passa de jornalista-mulher à frente de seu tempo para a típica dona-de-casa e heroína nas horas vagas.

Foto: Divulgação (o “antes”, o “depois” e o “mais depois ainda”)

Brandon Sampson (Andrew Horton), filho mais velho de Utópico e Lady Liberdade, nas HQs, possui um caráter bem mais flexível e inconsequente, devido viver à sombra de seu pai; bem diferente do bom e submisso moço que sua versão live action apresenta.

A mais interessante concepção da série televisiva é, sem dúvida, a personagem da outra filha do casal Utópico e Lady Liberdade, na forma da problemática Chloe Sampson– praticamente a cara de sua contraparte quadrinística – dotada da personalidade mais impactante do programa, mesmo que seja arquétipo da garota traumatizada que se entrega aos excessos hedonistas (sexo, drogas e rock and roll). Muito do carisma da personagem, porém, deve-se ao excelente trabalho da novata Elena Kampouris.

Foto: Divulgação (versões HQ e live action dos filhos de Utópico e Lady Liberdade)

A partir desses personagens e outros mais ou menos secundários para a trama, O Legado de Júpiter se foca na disfuncionalidade da família Sampson, que seria provocada pelo fato de serem criaturas superpoderosas e celebridades, regidas pelo onipresente Código. O cadenciamento do ritmo se deve, em grande medida, e para além dos muitos flashbacks já comentados, a tais dramas familiares.

Questiona-se, também, o rigoroso Código elaborado pela União, o qual determina que os super-heróis não podem intervir no livre-arbítrio humano ou matar qualquer criatura, independentemente da ameaça e danos que ela represente, o que redundou no fato de não terem feito nada para coibir a Segunda Guerra Mundial – seu massacre judeu e duas bombas atômicas – bem como a Guerra do Vietnã ou a da Coreia; assim como, mesmo diante da brutal morte de três jovens super-heróis e da iminência da destruição de parte do planeta no confronto com um supervilão, recusarem-se a usar de toda a força necessária para conter a ameaça. Essa discussão remete ao fato de Batman nunca ter atravessado a linha e matado o Coringa, mesmo após tantas mortes provocadas pelo palhaço assassino, como se ele precisasse manter o mal vivo para justificar sua forma de fazer o bem. Ecos do já mencionado O Reino do Amanhã e também da extraordinária saga do Marvelmen/Miracleman de Alan Moore (de novo!) aparecem aqui.

Com essa salada de referências, o programa atira para uma porção de lados, mas acaba não acertando muito em lugar nenhum.

Em termos técnicos, os atores são bons e competentes, com certo destaque para o charme malandro do George Hutchence – futuro Sky Fox – vivido pelo ator Matt Lanter. A reconstrução de época é fabulosa, com uma fotografia condizente. Mas os efeitos especiais em CGI oscilam entre competentes e artificiais, o que infelizmente remete às produções da CW, tirando um pouco mais do brilho do programa.

Foto: Divulgação

O fato é que O Legado de Júpiter seria uma ótima série se tivesse sido pioneira, lançada antes de seu maior e mais cruel referencial, que foi a série The Boys.

Exibida conforme o foi, é apenas mediana. Não se firma nem como série de ação de super-heróis – haja vista o ritmo mais lento – nem como dramalhão – em virtude dos poderes e clima fantástico permeando tudo. Aponta no aprofundamento da mitologia dos super-heróis, mas fica a meio caminho. Entretém sem muito brilho. Ainda assim, não é tortura a assistir (só um pouco chato, às vezes).

Ainda não se têm notícias de uma segunda temporada, apesar do gancho revelador deixado no final do último episódio, talvez por causa das reações divididas.

Torcemos, entretanto, para que a Netflix dê uma segunda chance para o programa, que agora pode renunciar ao formato dupla linha narrativo-temporal (apesar de muita coisa do passado dos heróis sugerir novas cenas do passado) dedicando-se mais ao desenvolvimento dos personagens, do mistério da história e do conflito geracional entre os novos e velhos super-heróis, utilizando efeitos mais bem cuidados, mas sem perder as características e objetivos de sua trama mais intimista.

Foto: Divulgação (o “trio” fantástico: a esposa, o marido e o irmão do marido)

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Nota: 3 / 5 (bom)


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MORTAL KOMBAT | Crítica do Neófito

Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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