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Críticas

MANHÃS DE SETEMBRO | Crítica do Neófito

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Muito antes de a expressão “cringe” ter virado o Trending Topic do momento – significando, entre outras coisas “vergonha alheia” – a famosa e bela cantora das décadas de 1960-1970, a loira Vanusa, no distante ano de 2009, viralizou – nesse sentido cringe – graças a uma desastrada e desafinada performance do Hino Nacional em evento da Assembleia Legislativa de São Paulo.

De lá para cá, a outrora glamourosa cantora e atriz passou ao status de meme vivo absoluto, algo que não foi alterado nem com o lançamento de seu último disco –Vanusa Santos Flores – produzido em 2015 por Zeca Baleiro. Vanusa acabou morrendo melancolicamente em novembro de 2020, envolta em histórico de depressão, abuso de remédios e álcool.

Foto: Divulgação (à esquerda, Vanusa e sua questionável performance em 2009; à direita, estampando a capa de “Manhãs de Setembro”)

O que pouca gente da atual geração sabe é que a cantora foi, além de sex simbol, referência de boa cantora, que emplacou dois enormes sucessos nos seus tempos áureos, a saber, a bela canção Paralelas, composta por Belchior, e a arrebatadora Manhãs de Setembro, que dá nome à atual minissérie nacional da Amazon Prime Video, estrelada por Liniker (brilhante), no papel da mulher trans, Cassandra.

O fato de o nome da série ser o mesmo da música não é mera coincidência. Na história, Cassandra – mulher trans, negra, motogirl durante o dia e cantora de boate LGBTQUIA+ à noite – acaba de adquirir sua própria quitinete, está feliz no namoro com o garçom Ivaldo (Thomas Aquino) – homem casado e pai de garota adolescente – e pronta para curtir uma liberdade que até então parecia não ter podido usufruir, principalmente junto aos amigos Roberta (Clood Dias) – dona da boate em que canta – e o casal formado pelo ex-padre Aristides (Gero Camilo) e o músico Décio (Paulo Miklos). Ela tem, por musa, justamente Vanusa, cuja foto junto com a mãe é mantida na parede do apê, e com quem se comunica mentalmente, como se Vanusa estivesse para ela como o Adolf Hitler imaginário do jovem Jojo de Jojo Rabbit (2019), ou o John Wayne para o pastor Jesse Custer da icônica HQ Preacher (1995-2000).

Foto: Divulgação

Tudo correria maravilhosamente bem, se não fosse o fato de, num belo dia, o passado vir bater à porta de Cassandra, na forma de Leide (Karine Teles, excelente), trazendo, a tiracolo, o menino Gersinho (Gustavo Coelho, muito bom), que seria filho biológico dos dois (ou melhor, das duas), do momento pré-transição de gênero de Cassandra.

Leide dá mostras de ter tido muito problemas com o álcool antes do nascimento de Gerson, o que acabou por conduzi-la à situação de ter que morar/dormir na rua, dentro de um envelhecido carro, em que reveza com o filho horários de sono – para não serem roubados ou coisa pior – sem qualquer expectativa muito promissora de mudar de vida. Apesar disso, Leide é boa mãe. Atenciosa, carinhosa e dedicada ao filho, vende muamba na rua e dá pequenos golpes por necessidade de sobrevivência, mantendo sempre um astral muito mais alto do que se poderia esperar para seu quadro de vida. A opção de levar Gersinho para conhecer o pai, muito além de satisfazer a curiosidade do garoto, significava também a divisão das responsabilidades; uma folga de sua rotina tão pesada; a oportunidade de tomar banho; talvez, de conseguir um emprego de verdade e voltar a dormir numa cama; ou até mesmo a chance de tomar um chopp e namorar, coisas básicas e simples, mas que lhe eram negadas por contingências pessoais e sociais.

Gersinho se mostra um garoto muito precocemente absorvido pela dura realidade da vida, cuja cor de pele e enquadramento social já o estigmatizam para caminhos pouco animadores. Ainda assim, é uma criança dócil e estudiosa, tendo por melhor amiga a alegre Grazy (Isabela Ordoñez), filha de uma também animada prostituta.

Foto: Divulgação

Pelo quadro acima apresentado, percebe-se que os personagens da série são, basicamente, formados por pessoas ainda marginalizadas pela sociedade brasileira (pretos, feios, gays, trans, mulheres, prostitutas, músicos), mas que têm enorme amor à vida. Ninguém ali quer lutar pelo sonho de ficar milionário; mas muito mais pelo direito de gozar de momentos de alegria genuína, cultura e amor. E isso é transmitido na série de forma genuína, sem forçar a barra. Não há “Polianas” nesse cenário, mas simplesmente pessoas que, apesar dos pesados pesares, recusam-se a entregar os pontos e desistir.

No desenvolver da história, claro que Leide e Cassandra vão, a princípio se chocar frontalmente. Afinal, para que uma possa usufruir de maior liberdade, a outra terá que, obrigatoriamente, fazer concessões quanto à sua própria. Aos poucos, porém, Cassandra vai se deixando tocar – se não pela cruel realidade de Leide – pelo carisma de Gersinho, que desperta nela sentimos maternais até então inconcebíveis, para os quais não daria simplesmente para fechar os olhos e esquecer.

Foto: Divulgação

Essa viagem de autodescoberta dos personagens é muito bem conduzida e dirigida, permeada por texto e roteiro bem amarrados. Não há santos nem demônios absolutos em Manhãs de Setembro, mas pessoas muito próximas das que podemos encontrar ao nosso lado a todo momento, caso prestemos a atenção. Todos são imperfeitos e até mesmo pouco virtuosos, mas nenhum também é psicopata perverso. O que liga todos eles é o inequívoco desejo de viver uma vida com sentido, com mais prazer e alegria.

Pode ser que grande parte do público se sinta incomodado com as figuras periféricas e marginais que desfilam na tela, todas bastante empobrecidas e sexualmente livres. A onda puritana que arrebentou sobre o pensamento atual já se revelou pouco tolerante com figuras sociologicamente minoritárias e de comportamento sexual menos ortodoxo. Pode-se até questionar mais uma produção nacional que exponha as mazelas sociais do país. Mas, só para lembrar, Nomadland, o grande vencedor do Oscar deste ano, retratou justamente os mazelados norte-americanas.

De modo que Manhãs de Setembro é muito mais do que mostrar o recorte do universo LGBTQIA+ ou a saga de uma mulher trans, negra e com passado conturbado. É uma ode ao amor e à luta, não pela sobrevivência, mas pela felicidade de cada um, que é construída para além dos estereótipos midiáticos.

Tudo feito com realismo, mas com muita elegância e beleza.

De sobra, tem-se o vozeirão incrível de Liniker interpretando músicas antigas de Vanusa em roupagem contemporânea, para massagear qualquer ouvido.

Vejam essa pequena pérola nacional na plataforma de streaming do Elon Musk (apenas 5 episódios de 30 minutos cada).

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Nota: 4 / 5 (ótima)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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