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Críticas

NOMADLAND | Crítica do Neófito

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O “American Way Life” e o “American Dream” são lemas centrais da sociedade norte-americana, representando, grosso modo, a ideia de que esforço árduo e contínuo é elemento indispensável e suficiente para se construir a tão almejada vida próspera e feliz (quase sinônimas nessa cultura).

Todo norte-americano que se preze, aliás, estufa o peito para decantar o princípio da Liberdade que sua sociedade disponibiliza para todos aqueles que se abrigam sob sua bandeira estrelada, sustentando a ideia de que o sonho americano está ali, ao alcance da mão, bastando que a pessoa verdadeiramente estique o braço para atingir.

De vez em quando, alguns críticos – como, por exemplo, Noam Chomsky – surgem no cenário intelectual estadunidense afirmando que esse tão decantado “sonho” hoje se encontra esvaziado, como demonstrariam os pífios números de mobilidade social das últimas décadas do país. Mas, via de regra, tais pensadores são tachados de comunistas ou alguma coisa semelhante, sempre com o objetivo de desqualificar suas conclusões.

Às vezes, então, é preciso que a salvadora arte entre em campo para falar aquilo que, pela trilha puramente intelectual é facilmente refutado. Eis o caso do filme que ora se comenta.

Foto: Divulgação

Em Nomadland (algo como Terra dos Nômades), a silenciosa tela preta que abre o filme mostra, em dois parágrafos, a triste realidade da ex-cidade de Empire, estado de Nevada, cuja existência dependia exclusivamente da fabricação de gesso realizado pela companhia US Gypsum, que ali funcionou por 88 anos, mas que fechou as portas em janeiro de 2011, devido à drástica redução na demanda por compensados de gesso nos EUA. Sem o motor central que movia a economia local, a cidade de Empire teve seu código de endereçamento postal simplesmente cancelado, tornando-se uma típica cidade fantasma.

Imediatamente, o filme passa a mostrar a rotina de Fern (Frances McDormand, esplêndida), que mora em seu pequeno carro a viajar pelo centro-oeste estadunidense em busca de empregos temporários que garantam sua subsistência, e a dormir em estacionamentos ou acampamentos para trailers. Na sua sutil e bela cena inicial, sem uma palavra sequer, Fern, ao separar algumas coisas e roupas, detém-se para saudosamente cheirar uma velha calça jeans masculina. De cara, fica-se sabendo que ela tanto é uma das expropriadas de Empire, quanto viúva relativamente recente, além de ficar claro que ela tinha uma vida boa, com casa, trabalho e amor; no entanto, agora não tem quase mais nada além de suas lembranças.

Com essa abertura lírica, econômica e ao mesmo tempo reveladora, a diretora e roteirista Chloé Zhao – ganhadora do BAFTA, do Leão de Ouro e do Globo de Ouro de melhor direção por Nomadland e atualmente no comando do blockbuster Os Eternos, do MCU – situa logo de saída o espectador no mundo daquela mulher profundamente marcada por circunstâncias muito maiores do que ela.

Foto: Divulgação (a diretora Cloé Zhao, à esquerda; e a estrela do filme, Frances McDormand, à direita)

No decorrer do longa, são tantas as camadas apresentadas na narrativa, que fica até difícil escolher algo com o que se começar o comentário.

Fern vive uma rotina e vida muito duras, colhendo os próprios dejetos dentro do carro no qual come e dorme, ou urinando em cercas ermas das estradas isoladas e geladas na terra do Tio Sam. Seu vai e vem à procura de trabalhos ao longo das cidades e estados que percorre pelos EUA pode muito bem metaforizar a rotina da vida, em que todos acordam, levantam-se, vão para seus trabalhos, almoçam, retornam para casa, jantam, deitam-se, fazem amor e dormem, para começar tudo de novo no dia seguinte. Tudo isso sem muito questionamento, afinal, a vida é assim.

Mas há mais camadas. Fern tem amigos, que vivem tão sós e autossuficientemente quanto ela e que, vez ou outra, vão morrendo pelo caminho (como na história de Linda (Linda May)). A vida na estrada, então, também se torna metáfora do existir, do sempre estar em movimento, encontrando e se despedindo. Qualquer semelhança com a música Encontros e Despedidas, composta por Fernando Brant e cantada por Milton Nascimento e Maria Rita, não é mera coincidência. Esse aspecto, aliás, é até mesmo explicitado, em certo momento do filme, por Bob (Bob Wells), líder do maior acampamento itinerante de “trailerers”.

No tocante à Fern, ela é uma mulher que se vira como pode, curte a vida como é possível, gozando ao máximo a liberdade que tal estilo de vida lhe proporciona, mas fica clara a sua solidão extrema quando têm que passar uns dias na casa de sua irmã, ou quando visita a família de Dave (David Strathairn), também um nômade, e quase um interesse amoroso que ela desenvolve em sua vida errante (como se isso ainda lhe fosse possível…).

Foto: Divulgação (David Strathaim e seu personagem quase homônimo, Dave)

Aliás, o arco de Dave, somado ao momento em que Fern e suas amigas de estrada experimentam um incrível motorhome de última geração e extremamente luxuoso, exibido em demonstração em um dos acampamentos em que paravam, denota que, para algumas daquelas pessoas, viver em trailers é uma opção, algo que se escolhe fazer, seja por desejo de liberdade, seja por querer um estilo de vida alternativo, seja por puro capricho. Todavia, para outras tantas pessoas, como Fern, trata-se da única alternativa que se sobrou para fazer: uma (quase) necessidade.

Privada de tudo, de todas as suas referências, de toda a base da sua vida, como voltar a ser algo parecido com que já se foi? Voltar atrás e começar de novo, dependendo da caridade da família é opção? Claro que, para alguns, será. Mas nem todo norte-americano, doutrinado desde pequenino com a ideologia (ou seria utopia?) do American Dream, conseguiria agir dessa forma sem um profundo e mortal sentimento de fracasso total; fracasso, esse, que denotaria o próprio fracasso do lema de seu país. Dessa forma, é quase como se sentissem (ou fossem) forçados a continuar a investir no sonho, mesmo que, pessoalmente, este não lhes seja mais possível. Se a cama em que se dorme não foi aquela que você mesmo construiu para si, ainda que disponha do mais confortável colchão do planeta, será desconfortável para essa pessoa. Essa mesma ideia é apresentada no filme Náufrago, quando o personagem Chuck Noland (Tom Hanks), após ser resgatado de seus seis longos anos dormindo numa caverna, não consegue se deitar na cama macia do hotel, preferindo o chão. É como a história do Paralítico de Cafarnaum do Evangelho, em que o recém curado tem que carregar a própria cama…

Mas pode-se pensar do outro lado: será que aquele conforto não naturalnão conquistado – seria tentador demais?

Num nível mais raso, Nomadland serve para mostrar a vida de milhares de esquecidos norte-americanos que preferem viver suas vidas na estrada, como os “invisíveis” que o Ministro da Economia do Brasil disse no ano passado ter descoberto, quando da viabilização do auxílio emergencial.

(aliás, o próprio título do filme – “terra de nômades” – é uma provocação poética: como um nômade, sujeito errante por definição, pode ter alguma “terra”, isto é algum local de estabilidade e segurança?)

Com todas essas questões possíveis, percebe-se como Chloé Zhao soube dar profundidade, poesia e criticidade ao seu longa, lindamente triste, vagaroso e melancólico, sem ser apelativo ou melodramático. É de gerar grande ansiedade para ver o que essa chinesa de menos de 40 anos (na data desse comentário) reserva para o blockbuster da Marvel!

Em termos técnicos, o filme é impecável, com trilha sonora sensível e completamente orgânica; belíssima fotografia caída para o azul e cinza (cores que, na cultura norte-americana simbolizam tristeza e melancolia); câmera segura e contemplativa, excelente direção de atores (alguns não profissionais e vivendo a si mesmos). A interpretação de McDormand dispensa quaisquer comentários, por estar simplesmente perfeita. O ritmo muitas vezes lento é fundamental para gerar a introspecção necessária ao entendimento do enredo.

Com isso, Nomadland mostra um recorte triste do sonho americano e a reflexão sobre o ato de viver que, como diz a filósofa brasileira Viviane Mosé, é um “acontecimento”.

Forte candidato ao Oscar, senão de melhor filme (pois, o norte americano não gosta muito de ver seus valores sendo confrontados de maneira tão crua), certamente será para o de direção, fotografia e melhor atriz.

Até o próximo encontro, viajantes! (essa frase nunca foi tão adequada!)

Foto: Divulgação

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Nota: 4,5 / 5 (excelente)

Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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