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Críticas

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI (Sorry We Missed You) | Crítica (tardia) do Neófito

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O respeitável site Foreing Policy publicou, em 20 de março, um extenso artigo no qual diversas autoridades em política internacional propuseram cenários possíveis para o pós-crise do Coronavírus, a maior crise sanitária do mundo moderno (vide aqui). Alguns acreditam que a globalização pode sofrer um abalo sísmico em sua estrutura, no sentido de os países se fecharem aos demais, por medo de novas contaminações importadas. Outros são mais otimistas, vendo oportunidades de mudança em setores fundamentais dos estados nacionais, como a implementação de um sistema universal de saúde.

Independentemente da ótica mais positiva ou negativa dos especialistas acima, o fato é que, nessa hecatombe virótica sem precedentes atuais – a última grande pandemia viral do mundo ocorreu há exatos cem anos, com a Gripe Espanhola – os países mais desenvolvidos e ricos do mundo – como EUA, China, Inglaterra, Alemanha – dois deles (EUA e Inglaterra) conhecidos pelo sua liberalismo radical – estão tendo que abrir mão de sua ideologia identitária para injetar trilhões de dinheiros em suas economias, destinados especificamente para ajudar empresas a se manterem vivas e pessoas mais necessitadas a não morrerem de fome.

Do Brasil e suas polêmicas políticas recentes, costumamos ver os EUA e a Inglaterra como modelos a serem seguidos, apesar do notável abismo histórico e sociocultural existente entre nós e eles. Ao assistirmos a filmes do tipo hollywoodiano, parece que fica fácil esquecer que aquilo ali é fantasia e não a realidade diária de norte-americanos e britânicos e que, apesar de todo o avanço e aparente riqueza e facilidade que esses países parecem proporcionar aos seus cidadãos, ali também há pobreza, tristeza, falta de oportunidades, um destino fatídico e cruel para um sem número de anônimos. Filmes como Parasita e Coringa, cada um a seu modo – mas sob a mira de muitos holofotes – discutem o problema dos excluídos do sistema capitalista mundial, inclusive nessas economias tão aplaudidas.

 Foto: Divulgação

Aliás, é inerente ao Capitalismo – diga-se de passagem o melhor sistema econômico já inventado pelo homem até o momento – que existam diferenças econômico-sociais entre as pessoas. A crueldade vem do tamanho dessa diferença e não da diferença em si: 2% da população mais rica do mundo concentra 99% das riquezas mundiais e, mais recentemente, foi revelado que 2 mil bilionários são mais ricos que 60% do planeta.

Mas, enquanto estes frios números apresentam um quadro – por mais cruel que seja – altamente abstrato para muita gente, cotidianamente, muitos são aqueles que têm que vivenciar essa realidade em suas vidas, tentando converter cada gota de suor do rosto em algo que gere um pouco de conforto para a família.

Toda essa enorme digressão serve para introduzir a crítica do último filme do talentoso diretor Ken Loach – vencedor da Palma de Ouro de Cannes de 2016 por Eu, Daniel Blake – a magistral e visceral obra inusitadamente intitulada de Você Não Estava Aqui (uma rara feliz tradução do título original, Sorry, We Missed You), cuja história, altamente cotidiana, vulgar (no sentido de comum) e humana, narra as desventuras de uma família da classe média-baixa britânica, às voltas com a necessidade de ganhar a vida, pagar o aluguel e botar comida na mesa.

Foto: Divulgação (Ken Loach)

Com um elenco formado por atores pouco ou nada conhecidos, mas extremamente competentes – Kris Hitchen (Ricky),  Debbie Honeywood (Abbie), Rhys Stone (Seb) e Katie Proctor (Liza Jane) – Loach acompanha a luta da família Turner para viver com certa dignidade na Inglaterra contemporânea. O patriarca, Ricky, após um bom tempo desempregado, consegue trabalho numa transportadora nos moldes que, aqui no Brasil, chamaríamos de “pejotização”, ou seja, ele é um empregado com status de empresário autônomo ou franqueado, que, no frigir dos ovos, representa alguém sem qualquer direito trabalhista e muitas obrigações (o carro, combustível e despesas com estacionamento e manutenção são próprios; o scanner fornecido pela empresa é de sua responsabilidade; qualquer dano ou perda de mercadoria é por sua conta; se não puder trabalhar outro entra em seu lugar; se for dispensado, não recebe nenhuma compensação etc.). Para que Ricky possa pegar esse “emprego”, a matriarca Abbie – cuidadora de idosos – precisa vender o carro que usava para atravessar a cidade em sua rotina de 14 horas diárias de trabalho, de segunda a sábado, além de alguns extras no domingo, para que seu marido possa adquirir a van da sua nova ocupação.

Foto: Divulgação

Enquanto isso, o filho mais velho, Seb, vive a típica rebeldia adolescente, desiludido com suas perspectivas acadêmicas e repleto de devaneios artísticos que se manifestam em questionáveis grafitagens pelos muros ingleses; enquanto a doce e precocemente resignada Liza, a caçula, trafega entre a ansiedade que lhe tira o sono de criança, as obrigações domésticas e escolares.

O filme é um soco no estômago. Mostrando situações tipicamente cotidianas e banais – como fazer uma entrega, um jantar e uma saída de carro em família, uma necessária visita ao pronto-socorro, um lanche vespertino com a filha (uma das mais belas cenas da obra) – consegue fazer refletir como poucas obras recentes conseguem, bem na linha de Parasita. Mas, enquanto o oscarizado filme coreano prefere se utilizar de metáforas e de uma narrativa surpreendente, que inesperadamente muda a tônica o longa, Você Não Estava Aqui prefere simplesmente mostrar, sem truques e com um mínimo de interferência, a dureza do dia-a-dia de quem, um dia, já teve planos e sonhos de uma vida melhor, mas é pego por acontecimentos imprevisíveis, incontroláveis e incontornáveis, sem ter nada que se possa fazer. E é de fazer chorar a cena em que a super contida Abbie constata que as suas fotos de um tempo mais feliz foram destruídas, novamente por algo fora de seu controle. Nem as boas lembranças ela pôde guardar…

Foto: Divulgação

E, assim, ficamos sabendo, por exemplo, que os Turner moram de aluguel porque a empreiteira que estava construindo a casa que financiaram ao se casar faliu, deixando todos os mutuários sem nada. Que uma crise do setor imobiliário tirou Ricky do mercado de trabalho. Que o casal teve uma juventude comum, frequentando festas, escola e idealizando o futuro; e que, agora, nem transam mais, de tão cansados da luta diária e por nem fazer mais sentido um prazer tão frugal e passageiro, quando há tantas coisas sérias e concretas com que se preocupar.

O final do filme é cruel, comovente, incômodo e doloroso, lembrando o triste e resignado epílogo da peça Tio Vania, de Tchekhov. Não há redenção na vida real. Não há beleza que resista ao tempo e ao esforço além do corpo. Não há um “fim” para os dramas de ter que viver cada dia mais um pouco. Não existe “felizes para sempre”. Mas, ainda assim, é preciso continuar vivendo, fazer o que é necessário por aqueles a quem amamos e prosseguir, pois é tudo com o que contamos de fato.

Na mitologia grega, a esperança – último item da temida Caixa de Pandora – é considerada uma praga, pois, faz com que depositemos nossas forças num futuro que pode nunca se realizar – no possível – ao invés do real. O filme de Ken Loach também faz com que nos voltemos para a realidade, para o agora!

Trata-se, portanto, de um filme que funciona em muitos níveis: como crítica social atroz do capitalismo selvagem e totalmente liberal; como drama familiar; como objeto de reflexão filosófica; e como uma bela obra cinematográfica.

Continuemos nossa jornada, então, ainda que como um cão de três patas…

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Nota: 5 / 5 (perfeito)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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