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Críticas

MEDIDA PROVISÓRIA – “será que a gente nota quando a história está acontecendo?” | Crítica do Neófito

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Uma das coisas mais incômodas na premissa de The Handmaid’s Tale – tanto na série televisiva da Hulu, quanto no livro de Margaret Atwood, no qual a série se baseia – é que aquele mundo ali descrito, no qual mulheres férteis num mundo com crise de fertilidade são escravizadas e cerimoniosamente abusadas sexualmente pela política de um estado religioso-totalitário, por mais surreal que possa parecer, tem muito mais verossimilhança do que gostaríamos de admitir, além de uma dose de “realismo” facilmente imaginável no cenário contemporâneo! Ou seja, é algo quase inacreditavelmente possível de se concretizar, principalmente de alguns anos para cá, com a ascensão de líderes populistas, de direita ou de esquerda – mas hegemonicamente de “direita” – que sempre apresentam discurso apoiado na “fé”, em “Deus”, em “valores morais”, na “família” e coisas afins, ao mesmo tempo que não demonstram nenhum constrangimento em pregar a “necessidade” da guerra, e a violência institucional contra adversários políticos, opositores e pessoas “fora do ideal ideologizado” destes “líderes”, normalmente, os que fujam do padrão heterossexual, cisgênero, conservador (melhor seria dizer reacionário) e branco.

Quando, há aproximadamente um ano e meio, ministros do governo do Brasil fizeram forte pressão e campanha para que uma menina pobre, preta e nordestina, de 10 anos, grávida após sofrer sucessivos abusos sexuais, não fizesse o indicado, legalizado e, no caso, necessário aborto, muitas vezes sob alegação de que isso ia “contra a vontade de Deus escrita na Bíblia”, qual a diferença substancial da ficção imaginada por Atwood?

Pois esse sentimento de horror despertado pela história de Os Contos da Aia, ao se pensar que absurdos como este podem estar mais próximos da realidade do que poderíamos conceber, é o mesmo que facilmente vem à tona ao se assistir a Medida Provisória, filme de estreia na direção de Lázaro Ramos, que conta com Taís Araújo, Seu Jorge e Alfred Enoch (o bruxo Dino Thomas, da saga Harry Potter) como protagonistas.

Na distópica história de realismo-fantástico, baseada na tragicomédia teatral “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, o Congresso Brasileiro, num “futuro próximo”, por iniciativa do Deputado/Ministro Lobato (Cláudio Gabriel), promulga a “Medida Provisória” nº 1888, na qual se determina que os pretos do país – os “melaninados” – serão todos obrigatoriamente deportados para a África, como forma de “compensação” pelo período de escravidão nacional! Que modo “nobre” de se pagar a dívida histórica da diáspora negra, hein?

De uma hora para outra, não importando se pobre ou de classe média-alta, todos os pretos se veem constrangidos pela polícia, agentes governamentais, vizinhos, colegas de trabalho e transeuntes a juntar alguns panos e imediatamente “voltar” para os países africanos que forçosamente forneceram seus ancestrais como a mão-de-obra responsável pela expansão mineradora e agrária do Brasil por vergonhosos 400 anos de escravidão.

A médica Capitu, vivida por Taís Araújo, não pode nem mesmo terminar o curativo que fazia na perna de um paciente, ao se ver obrigada a escolher entre aceitar passivamente a deportação ou fugir e se esconder nas matas do Rio de Janeiro, enquanto seu marido advogado e diabético Antônio (Alfred Enoch) – junto com seu primo jornalista/blogueiro André (Seu Jorge, ótimo) – refugiava-se no interior do apartamento do casal – com luz, água, comunicação e contato externo cortados – graças à proteção legal da inviolabilidade do lar conferida pelo art. 150 do Código Penal.

Foto: Divulgação (a alegria de ser quem se é!)

No encalço do dois resistentes negros, coloca-se a implacável servidora pública – “racista, jamais! Apenas cumpridora do seu dever”Isabel (Adriana Esteves, dando show), auxiliada com gosto pela solitária e amarga vizinha dos personagens principais, a temível Dona Izildinha, estupendamente interpretada por Renata Sorrah.

Daí para frente, desfila-se na tela um festival de absurdidades, com direito a cenas de separação forçada entre mãe preta e filha branca; o ressurgimento de “quilombos”; rimas narrativas acerca da violência institucional e a dos núcleos de resistência negra; requintes de crueldade na “tortura branca” levada a efeito contra Antônio e André; e discursos de ódio e preconceito falados mansamente e disfarçados de política pública.

Tudo isso embalado numa estética ágil e até mesmo bem-humorada para os parâmetros de tema tão indigesto como o racismo patológico e estrutural.

A câmera de Ramos é contemplativa, mas ao mesmo tempo nervosa. Denota controle narrativo, segurança de veterano e certa dose de lirismo, como na sequência de câmera que se inicia na janela do apartamento de Antônio e Capitu, afastando-se até uma bela tomada panorâmico-aérea do Rio de Janeiro, muito bonita e repleta de significados. Os méritos cinematográficos são muitos, mas há, também, alguns ruídos, como cortes abruptos, que tornam pouco claras algumas cenas de violência (talvez propositalmente, para garantir indicativo etário menos rígido); e vários takes de closes fechados, o que é característica de diretores que se notabilizaram como atores, por se mostrar instrumento adequado a valorizar a interpretação dos artistas.

Os atores, de modo geral, estão fantásticos nas suas composições – com o já merecido destaque dado às vilãs de Adriana Esteves e Renata Sorrah – mas a atuação de Seu Jorge também é digna de nota. Surgindo, a princípio, quase como alívio cômico, é dele a responsabilidade de trazer à tela a cena mais dramática e impactante do filme na qual, com quase nenhum diálogo, traduz-se toda a dor acumulada naquela situação paradoxalmente realista e inverossímil.

Foto: Divulgação (tenha certeza de que você não vai querer ter essa vizinha ou ser visitado por esta servidora pública!)

Mariana Xavier, no papel de Sara, a apaixonada namorada de André, tem oportunidade sair do estereótipo humorístico que tem marcado sua carreira e, mesmo não tendo o mesmo espaço de tela dos demais artistas, não decepciona nas suas inserções.

Taís Araújo mostra seu enorme talento nas suas cenas, dando atenção a detalhes preciosos, como retratar o assombro de sua personagem com a própria capacidade de violência na defesa de alguém indefeso, face à sua vocação médica; e o drama de se ver completamente angustiada com sua recém-descoberta gravidez, já que que o que seria motivo para extremada alegria, naquele cenário, converte-se em fonte de profunda e real apreensão. Há, todavia, um excesso de emocionalismo em alguns de seus diálogos, como se o diretor, em certos momentos, tivesse se esquecido de dirigir uma atriz para dar destaque para sua esposa (para quem não mora neste planeta, Lázaro Ramos e Taís Araújo são casados na vida real).

Enoch se esforça para transmitir o enorme sofrimento de Antônio, tanto pela tortura que sofria, quanto pelo amor por seu país. Mas, de todo elenco, ele é o que menos brilha, talvez – numa análise leviana deste colunista – pelo fato de ter sido criado na Inglaterra e educado na língua inglesa. Algumas de suas falas mais dramáticas parecem ser de fato interpretação e não algo que saía das vísceras do personagem.

Digno de elogio, também, o figurino – sempre condizente com a personalidade dos personagens e as várias situações ocorridas – e da excepcional trilha sonora, absolutamente acertada!

Voltando ao roteiro, é claro que, por se tratar de uma ficção distópica e de realismo fantástico, não seria concebível exigir alto grau de coerência em certas situações por ele desenvolvidas. Por exemplo, em termos jurídicos, o instituto da Medida Provisória é cabível ao chefe do Poder Executivo (Presidente) e não ao Congresso, em votação aberta como nos casos de impeachment, igual ao filme retrata. Logicamente, os roteiristas – Lusa Silvestre, Lázaro Ramos, Aldri Anunciação e Elísio Lopes Jr. – buscaram, com essa sequência (mostrada rapidamente na tela de uma televisão) fazer paralelo com a hipocrisia descarada da classe política a evocar valores e justificativas das mais estapafúrdias, com o único objetivo de darem show em tais votações, por se saberem televisionados. Do mesmo modo, se o Brasil retratado no longa fosse regido pela atual Constituição vigente, a simples cogitação da medida legal que motiva a história seria rechaçada com veemência. Por fim, num país de maioria negra – segundo o último censo – seria bastante difícil haver contingente policial branco suficiente para conseguir prender e deportar todos os pretos do país.

Mas, em verdade, isso não importa.

O que importa é a reflexão que o filme provoca. Afinal, se o movimento antidemocrático e iliberal que ganhou força na nação (e mundo!) nos recentes anos se expandir, conforme suas ambições, não fica difícil imaginar legislações similares à ficcional “Medida Provisória 1.888”, uma vez que, aparelhados, Congresso e Judiciário facilmente se dobram aos arroubos autoritários de líderes com tal viés ideológico, tal como na Hungria, em que recentes leis praticamente fizeram ressurgir, em plena Europa do século XXI, a criminalização da homoafetividade, com a desculpa de se combater a pedofilia (lei aprovada em 15/06/2021, que proíbe a “promoção da homossexualidade”).

A falta de coerência das lideranças atuais do país – que podem falar ou ter falado uma coisa em campanha para agora fazer e dizer exatamente o contrário, sem qualquer perda de apoio ou consequência mais severa – bem como o esforço para aparelhar órgãos e instituições e combater outras menos controláveis a curto prazo, afrontando os princípios democráticos usando a própria democracia (ou em nome dela) torna a experiência de se assistir ao filme Medida Provisória bastante incômoda, na verdade.

Difícil sair do cinema animado e falando alegremente o longa, pois, apesar de em momento algum assumir tom deliberadamente pesado ou demasiadamente denso, a obra de Lázaro Ramos provoca sentimentos profundos, reflexões amargas e boa dose de desconforto (tanto que algumas pessoas – possivelmente contrárias à crítica ali apresentada – deixaram da sala antes do fim da projeção). Não foi preciso, para isso, nenhuma cena gráfica ou apelativamente impactante. Apenas tornar visual algo absurdo, mas incomodamente próximo a um cenário realmente possível. Afinal, como diz André em determinado ponto do filme: “Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?”

Do mesmo modo, seria importante prestar a atenção com mais cuidado ao mundo e ao momento em que estamos vivendo e que, de certa forma, estamos endossando com nossos atos comissivos ou omissivos…

Ótima estreia de Ramos atrás da câmera, numa belíssima obra, obrigatória.

Foto: Divulgação (a salvação vem pela arte!)


Nota: 4,5 / 5 (excelente)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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