Connect with us

Críticas

SENSE8 | Crítica (tardia) do Neófito

Publicado

em

Em 1999 estreava Matrix, filme que redefiniria o cinema de ficção científica, tal como o fizera Star Wars no longínquo 1977.

Dirigido pelos, na época, The Wachowski, ou Irmãos (Andy e Larry) Wachowski – atualmente as irmãs Lana & Lilly Wachowski, pois os dois passaram pela CRS, ou cirurgia de redesignação sexual – Matrix foi uma revolução, não apenas nos inéditos efeitos especiais, mas também por sua imaginativa história distópica altamente intrigante e envolvente, repleta de cenas de luta espetaculares, que unia influências diversas, desde o Cristianismo aos mangás japoneses, perpassando pela cultura pop, pela literatura e os melhores filmes de ação já produzidos.

As duas sequências – Matrix Reloaded e Matrix Revolutions (ambos de 2003) – mantiveram a qualidade técnica, mas (especialmente Revolutions) em termos de conteúdo, ficaram a dever, apresentando uma trama confusa e incoerente com algumas das premissas estabelecidas no extraordinário longa de 1999. Ao que parece, as irmãs Wachowski se deixaram levar pelo estrondoso sucesso, permitindo-se a voos com características megalomaníacas.

O mesmo pode ser dito, em certa medida, do próximo filme das diretoras, Cloud Atlas (no Brasil, com o horroroso título A Viagem), de 2004, que trazia uma trama subestimada pela maioria da crítica e do público, ao percorrer um enorme período de tempo histórico, do século XVIII a um futuro pós apocalíptico, além de tocar em temas como reencarnação e homossexualidade. Trata-se, porém, de um belíssimo filme de ficção dramática com temática filosófica e estrelado por grandes atores, do porte de Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving e Hugh Grant (este, surpreendente!). Novamente, as misturas de cultura oriental com Cristianismo, entre outras referências, trespassados por um enredo intricado e desafiador não caíram nas graças do grande público.

Jupiter Ascending (O Destino de Júpiter), de 2014, foi outra empreitada das Wachowski, estrelada por Mila Kunis e Channing Tatum, cercada de expectativas e planejada para ser uma nova trilogia. Impecável tecnicamente, a história complexa de alienígenas que, para serem imortais, cultivam planetas pelo universo afora, mais uma vez utilizando a reencarnação como premissa, também não agradou nem ao estúdio, nem ao público em geral, fracassando nas bilheterias e ficando em apenas um longa.

Foto: Divulgação

A visão diferenciada das diretoras, explicitamente influenciadas pela cultura oriental – em especial a japonesa –, tem se mostrado de difícil deglutição pelos ocidentais, acostumados a tramas mais lineares, maniqueístas e sexualmente comportadas (isto é, basicamente focadas em relacionamentos heterossexuais). Com isso, fica-se sempre na esperança de que as inquestionavelmente talentosas e criativas irmãs Wachowski consigam emplacar um novo sucesso comercial, a fim de que não se tornem escravas de um único grande sucesso. Talvez com um pouco mais de humilde concessão ao mainstream (como foi o caso do primeiro Matrix), fique mais fácil conseguirem retornarem ao Olimpo de Hollywood novamente.

A boa notícia é que elas não se mostram acomodadas (ao contrário, por exemplo de M. Night Shyamalan).

Em 2015, a partir da rápida ascensão do canal de streaming Netflix, as irmãs Wachowski, em parceria com o roteirista (televisivo, cinematográfico e de quadrinhos) J. Michael Straczynski, lançaram a ambiciosa série televisiva Sense8 (leia-se “senseite”, que corresponde ao sensate do inglês).

A trama ficcional consistia na existência de uma nova subespécie evolutiva do gênero humano, o Homus Sapiens Sensorium, o que implicava no nascimento simultâneo de grupos de oito pessoas espalhadas aleatoriamente por qualquer canto do mundo, às quais estariam conectadas emocional e fisicamente umas às outras, compartilhando pensamentos, sensações, emoções etc. Tais grupos estariam sendo perseguidos por uma organização formada por cientistas humanos que sabiam da existência dessa nova espécie e por traidores de sua própria raça (principalmente na figura do vilão Sussuros, interpretado, com louvor, por Terrence Mann), tanto por causa de preconceito e medo de eliminação da espécie humana básica, quanto por interesses pessoais menos ideológicos e práticos, como a formação de um exército de assassinos zumbificados ou a imortalidade.

Na série, acompanha-se o “nascimento” – a partir do suicídio da personagem Angelica Turing (interpretada por uma superbotoxizada Daryl Hannah) – e a luta pela sobrevivência, a partir da intervenção de Jonas Maliki (Naveen Andrews, de Lost), de um desses grupos, formado pelos norte-americanos, Will Gorski (Brian J. Smith), policial de Chicago, e a hacker transsexual Nomi Marks (vivida por Jamie Clayton); um ator mexicano homossexual Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre); a empresária coreana e exímia lutadora Sun Bak (Doona Bae); a bioquímica indiana Kala Dandekar (Tina Desai); a DJ islandesa e viciada em drogas Riley “Blue” Gunnarsdóttir (Tuppence Middleton); o relutante gangster alemão Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt); e o motorista de ônibus africano Capheus “Van Damme” Onyongo (vivido na primeira temporada por Aml Ameen e, na segunda, por Toby Onwumere).

Foto: Divulgação

Os roteiros muito bem escritos a duas, quatro ou seis mãos (pelas irmãs Wachowski e Straczynski) se mostraram envolventes, misteriosos, sombrios, às vezes dinâmicos e outros lentos, como de costume em séries que se planejam longas (a ideia inicial, segundo disse Straczynski, era a produção de 5 temporadas).

Foto: Divulgação

A interação entre o grupo – a princípio assustadora e confusa e depois altamente prazerosa – foi muito bem trabalhada, de forma a realmente nos fazer crer que uma situação daquelas era possível de existir (e até desejável!).

Contudo, a ousadia das irmãs se fez presente tanto na concepção dos personagens, quanto da capacidade da ligação empática entre os “senseites”.

Nomi (personagem transexual interpretada por um ator transexual) vive um relacionamento amoroso homossexual com Amanita (Freema Agyeman), da mesma forma que Lito Rodriguez com Hernando Fuentes (Alfonso Herrera), ou seja, de cara, têm-se dois casais que extrapolam a ideia tradicional de gênero.

Além disso, a ligação sexual do grupo é intensa, de modo que, quando um membro do grupo faz sexo, é possível que, ao mesmo tempo, todos os demais sintam e participem da mesma relação, de forma a potencializar enormemente os níveis de prazer a serem alcançados. Em termos de imagem, isso proporcionava a chance de retratar na tela cenas de verdadeiras orgias, na qual, mentalmente, todos os membros do grupo estavam se tocando, transando e conectados.

Para a narrativa, tal recurso fazia total sentido. Contudo, as diversas cenas de nudez (à exceção da atriz Tina Desai, intérprete de Kala, que nunca se desnudou) – até de frontal masculino –, de sexo hétero e homossexual ou de parto natural explícito, mesmo para os padrões da Netflix pareceram demais para a audiência.

Foto: Divulgação

O alto custo da produção (que realizava locações reais nos países de origem de cada personagem), com perspectiva de durar quase uma década (entre a primeira e a segunda temporada houve um hiato de quase dois anos), o caráter altamente político (principalmente no set africano) e bastante crítico no que diz respeito ao combate ao preconceito de toda espécie (sexual, racial, dependência química), certamente também contribuíram para que a série, mesmo mantendo um alto nível técnico e dramatúrgico, fosse se tornando inviável para o canal de streaming.

Foto: Divulgação

Após a primeira temporada, foi produzido um especial de Natal com duas horas de duração, antecedendo aquela que seria a segunda e última temporada da série.

O que talvez o Netflix não esperasse era que a série, apesar de não ter caído no gosto popular das massas, possuía um público cativo e fiel, suficientemente mobilizado e barulhento para fazer com que o canal investisse num longa metragem que desse final à saga, mesmo após o seu cancelamento.

Desse modo, a série tem três momentos bastante definidos:

1) uma primeira temporada introdutória bastante satisfatória, principalmente a partir de seu segundo terço, que definiu cada personagem, estabeleceu um ritmo bacana, apresentou uma trama cognoscível, mas que ao mesmo tempo não entregava todo seu mistério;

2) uma segunda temporada que evoluiu o conceito, apresentou surpresas e reviravoltas, aumentou o ritmo da ação em alguns episódios, introduziu novos e interessantes personagens e mostrou que a série tinha problemas internos, o que ficou claro com a mudança do ator que interpretava Capheus (o especial de Natal que serviu de primeiro episódio da segunda temporada, pouco contribuiu para a trama, sendo longo e quase arrastado, na verdade);

3) um longa-metragem de episódio final, que se inicia muito bem, mantendo-se fiel ao ritmo das temporadas anteriores, mas que, aos poucos, vai acelerando e se tornando cada vez mais inconsistente com as premissas que haviam sido estabelecidas, de modo que, apesar de conferir um encerramento satisfatório para os personagens, acaba tendo que forçar a barra em alguns momentos e deixa em aberto vários ganchos criados ao longo dos 23 episódios (contando com o especial de Natal) anteriores.

Foto: Divulgação

Na verdade, o episódio final é quase uma grande decepção, comparado ao que a série havia mostrado e construído até então.

O personagem de Lito, por exemplo, acaba sem ter o que fazer no enredo final, sendo completamente desnecessário em cena.

A trama envolvendo o irmão de Sun é resolvida mediante a veiculação de uma reportagem jornalística que alguém assistindo a um noticiário de tv vê. O que é lamentável, haja vista a espetacular cena de perseguição envolvendo tais personagens nos episódios finais da segunda temporada.

A reunião dos amigos e parceiros sapiens de cada senseite no tiroteio na Itália é totalmente ilógica e forçada.

O grupo de hackers que ajudaram Nomi a ser “morta” no sistema do governo norte americano, sob a promessa de ela, um dia, ter que ajudá-los, é simplesmente deixada de lado e esquecida.

A mudança de tom no personagem do marido de Kala, Rajan (Purab Kohli) – de um empresário agressivo e marido apaixonado para um completo banana, capaz de aceitar uma relação poliamorosa com Wolfgang – também é forçada.

A cena do casamento final entre Nomi e Amanita – com direito a bolo de maconha – apesar de fazer certo sentido e de celebrar o amor sem fronteiras de sexo e gênero, deu um toque de novelão para a série.

A morte dos vilões, Sussurros e Lila Facchini (Valeria Bilello), é extremamente anticlimática. Apesar de coerente a forma – Wolfgang, que tinha sido torturado e visto sua amada Kala quase ser morta por um tiro a queima-roupa desferido por Lila, explodindo com um tiro de bazuca o helicóptero em que os dois fugiam – a rapidez da cena, sem mostrar o impacto que a iminência da morte estaria causando nos algozes, é muito frustrante.

O super-hacker Bug (Michael X Simmeos), apesar de conseguir, dos EUA, entrar no sistema do presídio sul-coreano, de invadir sistemas de segurança de tráfico urbano de qualquer cidade do mundo entre outras coisas, não foi capaz de resolver o problema da Sun, que também não tem sua história “consertada”.

Foto: Divulgação

Pelo menos a série pôde ter um fechamento, ainda que um pouco longe de se considerar satisfatório.

O que fica claro é que as Wachowski têm talento de sobra, muita criatividade, mente e capacidade inovadora. Talvez, num nível algo além do que o circuito mainstream e Hollywood deem conta.

Artistas muito inovadores, sem medo de mostrarem em seus filmes o que há de pior no ser humano ou de tratarem o sexo como algo mais real e menos glamouroso, como Brian De Palma e Terry Gilliam (para citar apenas dois), costumam amargar hiatos enormes sem conseguirem filmar, apesar dos elogios que sempre recebem da crítica. Em contrapartida, diretores mais comportados, como Terrence Malick, capaz de fazer filmes altamente abstratos (A Árvore da Vida, Amor Pleno, Cavaleiro de Copas etc.), porem contidos moralmente ou em termos de costumes (não há nudez ou sexo nos filmes de Malick) continuam a serem louvados e a receber carta branca para suas produções cabeça.

As Irmãs Wachowski, nesse sentido, apesar de realizarem obras com trama linear, recheadas de ação, de visual arrebatador, tecnologicamente inovadoras e voltadas para o público de massa, acabam, pela abordagem progressista no âmbito dos costumes e tiradas (pop)filosóficas sendo pouco compreendidas.

Sense8 é um excelente exemplar do que as corajosas roteiristas e diretoras podem fazer, mas, a cada novo fracasso que acumulam, vai ficando mais difícil conseguirem dos estúdios o investimento necessário para que seus voos imaginativos possam ser concretizados.

Torcer para que elas consigam encontrar esse delicado e difícil equilíbrio entre o comercial e o autoral, não porque suas concepções não sejam bem vindas e até mesmo desejadas para abalar a mesmice hollywoodiana, mas para que consigam continuar produzindo obras à frente do seu tempo, que façam pensar ao mesmo tempo que entretenham.

Assistam, Sense8!

Vista sem preconceito, será uma experiência sensorial muito compensadora! Afinal, apesar dos tiroteios, do suspense, de certo clima pesado às vezes, trata-se, em última análise, de uma história sobre o “amor”, companheirismo, amizade e empatia!

Foto: Divulgação


Nota: 4 / 5 (ótimo)


SIGA-NOS nas redes sociais:

FACEBOOK: facebook.com/nerdtripoficial

TWITTER: twitter.com/nerdtripoficial

INSTAGRAM: instagram.com/nerdtrip_

VISITE NOSSO SITE: www.nerdtrip.com.br


Leia outras notícias do Nerdtrip e confira também:

O CAMINHO PARA CYBERPUNK – APENAS UMA NOITE DE SEXTA | Johnny Silverhand

VIDRO | Crítica (tardia) do Neófito

HOUSE OF X 01 | Os novos deuses mutantes de Jonathan Hickman

C – POP | Well intended love o drama que mexeu com meu coração

BTS | Lil Nas X e RM lançam uma faixa intitulada Seoul Town Road

RUTGER HAUER | Morre o Ator que Deu Vida ao Inesquecível Replicante Roy Batty em Blade Runner

O REI LEÃO | Crítica do Neófito

K-POP | MAMAMOO lança seu MV intitulado ‘Gleam’

KPOP | O grupo sul-Coreano VAV surpreende os fã com novidade

STRANGER THINGS S03 | Crítica do Neófito

Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

Comente aqui!

Mais lidos da semana