Connect with us

Críticas

A VIDA INVISÍVEL | Crítica do Neófito

Publicado

em

É bastante difícil para um homem fazer uma crítica realmente justa do filme A Vida Invisível (baseado no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, escrito por Martha Batalha, e publicado em 2016). Por mais que se busque estar sensível ao universo feminino e toda a opressão que historicamente pesou sobre ele, trata-se, em alguma medida, da visão do “opressor”. Mas, vamos lá.

Foto: Divulgação

A Vida Invisível talvez seja o filme mais feminino e feminista que já tenha assistido, e o melhor: sem se tornar planfetário em momento algum. A mensagem que o filme passa está na história em si, estúpida e dolorosamente real, principalmente para quem é da minha geração e teve a oportunidade de viver com a avó – como meu caso – que foi uma mulher que de fato viveu no tempo em que a trama do filme se inicia e viveu todo aquele sistema de pensamento moral e cultural da época (década de 1950).

Centrado no amor entre duas irmãs – Eurídice e Guida Gusmão, interpretadas respectivamente e de forma irrepreensível por Carol Duarte e Julia Stockler – o enredo do longa percorre e retrata a realidade da mulher brasileira da geração anterior aos baby boomers (ou seja, pessoas nascidas antes de 1945).

Foto: Divulgação

Trava-se de um momento histórico em que as mulheres nasciam para casar e ter filhos, e ai daquelas que ousassem agir de forma diferente! O destino era a prostituição, a subvida em favelas ou em empregos desumanos, ainda tendo que ouvir o tempo todo acusações sobre sua condição de desquitada, mãe solteira etc., como se essa condição de vida – muitas vezes forçada e necessária (nunca buscada) – fosse, de fato, um crime.

A virtude de A Vida Invisível é tratar desses e de outros assuntos espinhosos sobre a realidade histórica da mulher de forma séria, bonita e sensível sem “subir no palanque” e/ou recorrer ao discurso fácil. Tudo é, simplesmente, mostrado.

Questões como “por que deve haver educação sexual nas escolas?” são levantadas de forma sutil e natural, por exemplo, na cena da noite de núpcias de Eurídice, que se assemelha muito mais a um estupro do que a uma iniciação sexual, ainda que conte com a curiosidade erótica da mulher virgem e com o verdadeiro amor do marido (interpretado de maneira surpreendente por Gregório Duvivier).

Foto: Divulgação

Objetificação do corpo feminino, o brevíssimo prazer físico do homem “justificando” toda uma vida de sacrifícios para a mulher, o silêncio impotente diante de uma situação sociocultural imposta não se sabe por quem ou quando (percebido na cena em que Guida, por ser mãe solteira, descobre não poder viajar com o filho que sempre criou sozinha, desde o nascimento), o sonho de uma carreira sempre adiada em nome do papel social da mulher no modelo familiar patriarcal… tudo está lá, em A Vida Invisível.

Eurídice e Guida são duas mulheres absoluta e absurdamente comuns: suburbanas; graciosas, mas longe de serem “lindas”; classe média-baixa num período em que isso poderia ser considerado um luxo; cariocas filhas de imigrantes tradicionais e conservadores. Facilmente encontradas em qualquer esquina, na padaria, no sacolão ou do lado da gente, no sofá da sala!

Foto: Divulgação

E é isso que comove e torna o filme tão relevante.

Mas não é só.

O próprio filme em si – e sua temática – acabam também sendo um manifesto (talvez involuntário) contra a situação cultural que se desenha no país. E isso porque, claramente, o longa opta por soluções criativas e “baratas” para compor a reconstrução de época, parecendo que economizou até mesmo nos pobres letreiros do filme, formado por letras um pouco mais estilizadas do que uma fonte tradicional, num vermelho chapado, que remete às produções (principalmente da pornochanchada) da década de 1970.

Aproveitando que se tocou no aspecto técnico da produção, há algumas coisas que devem ser pontuadas.

A Vida Invisível se caracteriza por um naturalismo quase visceral (em minha mente, sempre vinha as imagens sugeridas pela leitura do livro O Cortiço, de Aluísio Azevedo). O diretor Karim Aïnouz (Madame Satã) parece adepto do lema do Cinema Novo“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – tamanho despojamento e gosto pelo “cru” que ele demonstra no filme de maneira geral (ninguém é “belo”, as paredes são sujas, do sexo surgem secreções etc.). Cenas de nudez masculina e feminina são filmadas como coisas absolutamente normais, desglamourizadas e “deserotizadas”. A pobreza e a sujeira dos guetos cariocas mostradas em tela quase fazem com que percebamos o cheiro dos esgotos daqueles lugares (lembrando que se trata da década de 1950 e de precaríssimas condições de saneamento).

A interpretação minimalista, sem excessos, contida e contrita dos atores (com destaque absoluto para as atrizes, Carol Duarte e Julia Stockler) muito mais centrada nos olhares, postura corporal e expressões do que em atuações grandiloquentes, torna a dor, a frustração, a paixão e as pequenas alegrias muito mais vívidas e marcantes, justamente por não saírem de explosões passionais, como seria de se esperar numa novela de horário nobre, por exemplo.

Não é um filme que “emociona” (“faz” chorar fácil), mas que provoca profundas reflexões.

Foto: Divulgação

E, para retomar o tema do manifesto, a falta de recursos para uma produção mais “rica” torna a simples realização do filme um ato de heroísmo por parte de seus realizadores.

Essa falta de recursos, aliás, é facilmente percebida, não só na já comentada economia na reconstrução de época, mas também na fotografia mais escurecida (que parece uma mania das produções não humorísticas nacionais), na opção por locações sempre reais, que acabam por conferir, mesmo nas cenas em espaço aberto, uma sensação claustrofóbica ao filme.

A dicção fortemente carregada do sotaque original de Portugal dos pais das personagens é outro ponto fraco, pois, realmente, talvez pela precariedade da mixagem do som, muitos dos diálogos ditos por eles se perde numa fala ininteligível. Outro erro detectável está na idade de alguns atores mirins, claramente incompatível com a idade de seus personagens, segundo a própria passagem de tempo do filme.

Ainda assim, o filme gerou muitos empregos diretos e indiretos na sua produção, faturou prêmios em Cannes e Berlim, além de ser indicado pela revista Variety como o mais “forte concorrente do Brasil na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro”.

Fica a dúvida, por outro lado, se, com maiores recursos, o filme perderia sua essência e poderosa força dramática.

Por último, é indispensável reservar algumas linhas para falar da incrível Fernanda Montenegro. Com uma participação de aproximadamente 10 minutos num filme longo, de pouco mais de duas horas, sua presença é de um impacto impressionante. Aos 90 anos de idade, a diva da dramaturgia brasileira consegue, com pouquíssimo espaço em cena, passar toda a dor e complexidade da personagem para quem ela empresta seu corpo. É simplesmente fabuloso o que ela consegue fazer com o olhar, as mãos, o tom de voz e a postura corporal.

Foto: Divulgação

A Vida Invisível precisa se tornar o mais “visível” possível.

Sua mensagem, tão naturalmente transmitida, é muito poderosa e necessária para nosso mundo atual.

O que provoca mais uma dor no coração, afinal, sabe-se que, por algum tempo, filmes como este podem não ter a menor chance de serem filmados.

Assistam a A Vida Invisível! Pelas mulheres, pelo cinema brasileiro ou simplesmente, por uma boa e sensível história.

______________________________________________________________________________________________________________________________________

Nota: 4 / 5 (ótimo)

_______________________________________________________________________________________________________________________________________

SIGA-NOS nas redes sociais:

FACEBOOK: facebook.com/nerdtripoficial

TWITTER: https://twitter.com/Nerdtripoficia3

INSTAGRAM: https://www.instagram.com/nerdtripoficial/

VISITE NOSSO SITE: www.nerdtrip.com.br


Leia também:

POR QUÊ OS QUADRINHOS SÃO TÃO CAROS NO BRASIL | O porquê e algumas soluções

WATCHMEN SÉRIE | Crítica do Neófito (S01E02)

NOVOS ANIMES DUBLADOS: AS EMPRESAS ENVOLVIDAS PRECISAM (DEFINITIVAMENTE) CONVERSAR MAIS ENTRE SI

STAR WARS EP IX: RISE OF SKYLWALKER | Wedge Antilles confirmado no filme

REQUIEM PARA UM SONHO | Crítica Completa

VIOLET EVERGARDEN | Eu te amo

DEATH STRADING | Rumor confirmado: game terá uma versão para PC

K-POP | Riot games anuncia nova parceria musical com Soyeon para League of Legends

CALL OF DUTY MODERN WARFARE | Impressões Iniciais

K-POP | Todos os grupos e artistas que já estiveram no Brasil até 2013

Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

Comente aqui!

Mais lidos da semana