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Críticas

JUDAS E O MESSIAS PRETO | Crítica do Neófito

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“Qual a idade da sua filha? 7, 8 meses? O que você vai pensar quando sua filha trouxer um preto para casa?”

 

Em um determinado e tenso momento do filme Judas e o Messias Preto (impactante estreia na direção de Shaka King) o grande Martin Sheen – sob uma tonelada de maquiagem para viver o lendário diretor do FBI, J. Edgar Hoover – faz a pergunta acima para seu dedicado, comedido e até então legalista agente Roy Mitchell (Jesse Plemons), que mantinha o ex-ladrão de carros e vigarista William O’Neal (Lakeith Stanfield, ótimo) infiltrado como informante no seio dos Panteras Negras de Ilinois, para passar informações sobre o carismático presidente do partido revolucionário, Fred Hampton (Daniel Kaluuya, soberbo), capaz de, com seus discursos inflamados, mobilizar comunidades pretas, unir gangues rivais e até mesmo atrair latinos e brancos desiludidos com o american dream em torno da mesma causa socialista e antirracista que ele defendia com absoluto fervor. O contexto era a década de 1960, após os assassinatos de Malcom X (1965) e Martin Luther King (1968), isto é, em plena luta pelos direitos civis nos EUA.

A questão que se levanta é: por que essa pergunta ainda causa desconforto, meio século após ter sido formulada no escritório do diretor do temido Federal Bureau of Investigation norte americano?

Porque, infelizmente, ela continua perturbadoramente atual.

A arte – incluindo a cinematográfica – tem a capacidade de proporcionar enlevo, catarse, descontração e um pouco de respiro ao seu público. Mas pode também provocar reflexões e pensamentos críticos. Esse é o caso de Judas e o Messias Preto, filme concebido para fazer pensar; para fazer refletir sobre o racismo estrutural e patológico que permeia as sociedades ocidentais historicamente escravocratas ainda hoje; mas principalmente para fazer perceber o quão pouco a humanidade evoluiu em termos morais e humanos, desde que Rosa Parks, em 1955, recusou-se a dar seu lugar no ônibus para um branco poder assentar.

Foto: Divulgação

Impossível, portanto, assistir a Judas e o Messias Preto sem enxergar os movimentos que hoje se assistem ao redor do mundo, nos quais a apologia à pureza racial, a governos explicitamente autoritários e fascistas (como o Nazismo), à xenofobia, à LGBTQfobia e outras tantas mazelas morais parecem normalizadas nos lábios de “líderes” autodenominados conservadores (na verdade reacionários), o que legitima a que racistas, preconceituosos e machistas de toda ordem saiam do armário e vociferem em altos brados seu discurso ressentido e perverso, porém disfarçado de nacionalismo, patriotismo, religiosidade e meritocracia.

(a história do filme é verídica e pública, não representando spoiler trazer certos elementos da trama! Ainda assim, se você não quiser saber nada da trama, pule o próximo parágrafo)

Judas e o Messias Preto se trata de um drama biográfico, que retrata o último ano de vida do presidente dos Panteras Negras em Ilinois, Fred Hampton, assassinado numa ação conjunta da polícia de Chicago com o FBI, em 1969, enquanto dormia no apartamento em que vivia, na Cidade dos Ventos, junto a sua companheira grávida de nove meses e outros “camaradas”. O detalhe pitoresco fica por conta do fato de que Hampton, na verdade, havia sido sedado pelo responsável pela segurança do partido, William O’Neal, que, durante o ano de 1969, passou informações para o FBI sobre as atividades dos Panteras Negras, em troca de se manter livre da cadeia e algumas benesses em dinheiro, ainda que isso fosse de encontro à sua pessoal identificação com o movimento que sistematicamente traía.

Hampton era um radical, que tinha orgulho de se autointitular revolucionário, pregando abertamente o socialismo, o anticapitalismo e o antirracismo, bem na linha de enfrentamento social proposta pelo fundador do movimento, Malcom X. Suas palavras ainda hoje podem causar certo calafrio na espinha dos mais alinhados ao pensamento neoliberal e até mesmo de pessoas moderadas, pois o caráter delas têm, de fato, cunho revolucionário, voltado para as massas ou “o povo”, como ele gostava tanto de afirmar. O tom de seu discurso de universalização da saúde e educação fazia contraponto à opressão policial, política e social sofrida pelos pretos norte-americanos nas décadas de 1960-1970 e que – pasmem! – pôde ser assistida mundial e contemporaneamente, quando da morte de George Floyd, em maio de 2020, por um policial branco que, simplesmente, resolveu asfixiado até a morte com o joelho sobre seu pescoço, mesmo já estando imobilizado e algemado sobre o asfalto de Minneapolis. Ou seja, pouca coisa mudou de 60 anos para cá… (lembrar também o caso do brasileiro preto João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte numa das lojas do Carrefour de Porto Alegre-RS, em novembro de 2020)

Foto: Divulgação

Como pode ser visto, o enredo do filme é poderoso e bastante politizado. E Shaka King tem plena consciência disso, não amenizando nos discursos, na apresentação dos pontos de vista (inclusive radicais) dos Panteras Negras, nos conflitos entre a militância e a vida privada, na ambição pessoal versus a causa. Pode-se até acusá-lo de ser muito parcial, por focar muito na visão dos negros e, de certa forma, demonizar os brancos, à exceção da cena de execução de um policial branco em perseguição, que mostra o quanto a violência, o ressentimento e a raiva de ambos os lados muitas vezes só consegue gerar mais violência, ressentimento e raiva (o perigo da polarização!). Mas seria fechar os olhos para o tamanho da opressão social sobre os pretos se não fosse adotada a perspectiva destes.

O roteiro é um pouco burocrático, na verdade, e a condução do filme é bastante convencional, apesar de alguns movimentos de câmera interessantes, principalmente na primeira parte. A fotografia puxada para o cinema noir e ecoando a estética dos Blaxploitation da década de 1970 funciona muito bem para o tom da produção, conferindo a dose certa de realismo que a história exige. A cenografia e o figurino estão irrepreensíveis e, embalando tudo, a trilha sonora de Mark Isham, dissonante e jazzística, é perfeita, nunca aparecendo de forma estridente, mas estabelecendo a atmosfera da época e do contexto das cenas e personagens.

Foto: Divulgação

Mas o ponto alto fica, de fato, para a atuação. A disputa entre as performances de Lakeith Stanfield e Daniel Kaluuya é dura de tão bem que os atores se saem na composição de seus personagens, mas o último ganha por uma cabeça, sendo injustiça se ele não for indicado para nenhuma premiação. Menção mais do que honrosa para Dominique Fishback no papel da amada de Hampton, Deborah Johnson.

Mas, em resumo, Judas e o Messias Preto (Judas and the Black Messiah) extrai toda sua força da incrível história real que narra. Os paralelos com a narrativa neotestamentária justificam plenamente o título do filme, milagrosamente traduzido sem alterações para o Português! O verdadeiro idealismo, capaz de mudar o mundo, realmente ficou lá atrás, destruído por interesses mesquinhos e imediatistas que, assim como o racismo, ainda vagueiam por entre nós.

Muita coisa pode ser dita do longa, mas é difícil encontrar palavras que consigam traduzir as emoções (algumas desagradáveis) que o filme desperta na alma. Aparentemente, ao revisitar o passado, Judas e o Messias Preto, na verdade, acende uma luz na sala escura, pegando de surpresa todos os  que se aproveitavam da penumbra.

Sem sobressaltos e firulas, conta mais um capítulo da triste história humana, neste recorte histórico de uma luta que persistirá, enquanto alguém ainda se incomodar sobre o que pensar se sua filha trouxer um preto para casa para namorar, amar, constituir família ou simplesmente ser amigo.

Foto: Divulgação

PS.: ao final do filme, troca-se Fishback interpretando William O’Neal numa entrevista dada por ele em 1990 pelo verdadeiro William O’Neal e a descrição dos trágicos desdobramentos dessa triste história real.

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Nota: 4 / 5 (ótimo)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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