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Críticas

MEU PAI | Crítica do Neófito

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“Relógio! deus sinistro, assustador e calvo

E cujo dedo ameaça nos dizer: Recorda!

A vibradora dor, que, no medo transborda

Será em teu coração fixa como num alvo”

(Baudelaire)

Numa breve e tocante cena do belíssimo filme Em Busca da Terra do Nunca (2004), a idosa e recém enviuvada Mrs. Snow (personagem de Eileen Essell), na recepção do teatro, logo após o sucesso da estreia teatral de Peter Pan, explicita para J. M. Barrie (vivido por Johnny Deep), autor da premiada peça, que o “Crocodilo Tique-Taque” – algoz do Capitão Gancho, sempre com um relógio não digerido na barriga – simbolizava a implacabilidade do tempo, sempre vindo atrás da gente.

De fato, a passagem do tempo é inflexível para todos (exceto, talvez, para a Paula Toller e a Rainha Elizabeth), não havendo como escapar dos efeitos – bons e ruins, físicos e anímicos – de cada ano que passa, bem como o destino para o qual isso conduz.

A velhice é um estigma em si mesma, representando a fase da vida em que a pessoa passa a se tornar quase que descartável. Aos 70 anos, você é compulsoriamente aposentado, não servindo mais para trabalhar. Vá para a casa descansar e morrer em paz! Preferencialmente, em silêncio.

Alguns têm velhices saudáveis, sofrendo apenas algumas limitações físicas naturais, até à morte inevitável. Mas há outros para os quais a passagem do tempo é mais cruel, podendo desenvolver demências e/ou doenças degenerativas – como Parkinson, Alzheimer, certos tipos de AVC’s etc. – o que os tornam, além de limitados mental e fisicamente, completamente dependentes dos cuidados de outrem.

Quem já teve que conviver com pessoas adoecidas com o Mal de Alzheimer, por exemplo, sabe o que significa tratar com extremo carinho de alguém que, apesar de ter a aparência, a voz e os trejeitos de uma pessoa profundamente amada – como pais, avós, tios etc. – nem ao menos se recorda mais do seu nome. Assemelha-se a cuidar e amar uma casca, que a cada dia se distancia daquele ser que um dia existiu ali dentro e que se torna incapaz de controlar até mesmo as funções fisiológicas mais básicas.

A demência não escolhe pessoas em razão de classe social, capacidade cognitiva, cor de pele, etnia, orientação sexual. Assim como o câncer, trata-se de uma doença incrivelmente democrática.

Enquanto jovens e observadores externos do estado de demência, apenas podemos inferir o que nossos velhinhos enfrentam. Constatamos, assim, que alguns desses – às vezes os mais intelectualmente desenvolvidos – costumam ter maior consciência do processo pelo qual passam; e é doloroso ver a luta (infelizmente vã) que empreendem para não se perderem por completo.

Essa enorme introdução serve de apresentação ao belo e doloroso filme Meu Pai (The Father, em inglês), estrelado pelo brilhante Anthony Hopkins, que interpreta seu homônimo Anthony, um velho e bem-sucedido engenheiro de 83 anos de idade (a mesma idade do ator!), sempre à procura de seu relógio, que passa a ter que enfrentar as consequência de uma indesejada demência frente à sua filha Anne (Olivia Colman, ótima), seu impaciente genro Paul (Rufus Sewell) e as cuidadoras que se revezam na tentativa de tratá-lo, com destaque para a jovem Laura (Imogen Poots).

Foto: Divulgação

Vivendo num belo, rico e espaçoso apartamento no centro de Londres, Anthony é um homem de gosto e hábitos refinados, inteligente e arguto, que aos poucos começa a não compreender o mundo ao seu redor, como se as circunstâncias ficassem se repetindo de forma mórbida e a confundir (ou ser confundido por) pessoas de seu convívio.

A premissa simples, porém, é brilhantemente conduzida pelo jovem e estreante (em cinematografia) diretor, roteirista e dramaturgo francês Florian Zeller, que, apesar de postar sua câmera como observadora passiva, na verdade é impressionantemente subjetiva, adentrando na cabeça de Anthony, para trazer ao espectador a experiência de pouco a pouco ir perdendo a consciência por si próprio. A cada minuto de projeção vai-se mergulhando numa angustiante espiral de confusão mental, de sobreposição de imagens, rostos, situações, que torna Meu Pai (texto oriundo do teatro) um exercício de imersão profunda, dolorosa e lírica no ato de envelhecer e adoecer.

Zeller foge da teatralidade inerente ao texto e se utiliza de várias técnicas cinematográficas para narrar a história a que se assiste. Desse modo, os tons de azul e laranja da fotografia têm significados profundos para indicar o que pode ou não ser real; o apartamento em que se passa a maior parte da trama, apesar de grande e espaçoso, vai se tornando cada vez mais claustrofóbico e labiríntico. Cada retrato de cabeceira, quadro na parede, móvel da sala ou do corredor do prédio tem uma função narrativa.

Mas nenhuma técnica de filmagem, de direção de arte, fotografia ou figurino teria qualquer impacto em Meu Pai se o longa não contasse com os atores que dão vida aos personagens ali retratados. E, por mais que todos estejam em ótima forma – e a cujo elenco enxuto deve-se acrescentar Olivia Williams (em papel duplo, que não se deve explicar muito) –, o brilho intenso como sol vem da atuação impressionante de Anthony Hopkins. Muitas vezes escalado para o papel de vilão, o octogenário ator britânico é uma verdadeira força da natureza em cena, dando vida a um homem velho e extremamente comum, mas nada ordinário. Se todos que assistirem ao filme não se emocionarem com sua interpretação, seria bom consultar um médico rápido, para constatar se não está sofrendo de algum problema de ordem emocional, pois, não cremos ser possível ficar indiferente à atuação magnética de Hopkins, não à toa, indicado para o Oscar de melhor ator, 30 anos após sua primeira indicação, pelo inesquecível Hannibal Lecter de O Silêncio dos Inocentes.

O final arrebatador faz pensar – e muito! – sobre identidade, sobre velhice, sobre demência, sobre cuidar de quem se ama, sobre ser velho, sobre solidão, sobre vida pessoal versus família, sobre envelhecer

A viagem por dentro da cabeça de Anthony, portanto, é bonita como a vida e triste como a morte.

Na pele de Anthony Hopkins, torna-se poética e pujante.

Filmaço!

 Foto: Divulgação

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Nota: 4,5 / 5 (excelente)


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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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