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Críticas

NADA ORTODOXA | Crítica do Neófito

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Numa das cenas mais bonitas de Nada Ortodoxa (Unorthodox) – minissérie em 4 episódios produzida pelo Netflix, baseado na história real da escritora Deborah Feldman – a protagonista, Esty (Esther), vivida esplendorosamente por Shira Haas, entra numa belíssima igreja católica ao estilo gótico de Berlim, no momento em que um coral juvenil entoava a tocante Hebe deine Augen auf de Mendelssohn (1809-1847), não por acaso, um compositor judeu messiânico, isto é, convertido ao protestantismo (essa música, de poucos minutos, pode ser facilmente encontrada no Spotify e vale à pena ser ouvida).

Foto: Divulgação

Duas coisas ressaltam aos olhos nessa sensível sequência, que diz muito sobre a saga da heroína fictícia e real, além de provocar reflexões bastante pertinentes.

A primeira coisa é pensar no paradoxo de como os judeus – tema central da minissérie – foram tão perseguidos ao longo da história mundial pelo Ocidente e o fato de que um dos maiores pilares da sociedade ocidental se fundamentou na história de vida e lições morais justamente de um judeu, Jesus, louvado na cruz que enfeita o majestoso altar da igreja da cena.

A segunda coisa é a grande mistura cultural e religiosa ali presentes: uma judia norte americana – até pouco tempo ultra ortodoxa – adentra uma Igreja católica na Alemanha – onde tantos de sua raça morreram – preenchida pelos sons da música de um protestante de origem também judaica, num coral formado por pretos, loiros, morenos, gordinhos, magrinhos e talvez de gêneros diversos. A sorridente e receptiva criança sentada no banco com seu delicioso pirulito, além de ter relação importante com a gravidez da protagonista – que subitamente se vê com lágrimas nos olhos pela beleza da canção e daquela atmosfera – simboliza um futuro talvez melhor e mais tolerante para com as diferenças; a esperança de que o ser humano um dia conseguirá se desvencilhar das amarras egoístas e preconceituosas rumo a uma postura que realmente leve em conta os interesses coletivos para além dos puramente pessoais e imediatistas.

De súbito, um trecho da música Imagine, de John Lennon, vem à minha mente: “imagine there’s no countries; it isn’t hard to do; nothing to kill or die for; and no religion, too…” (“imagine que não há países; o que não é difícil imaginar; ninguém para matar ou morrer; e nenhuma religião também…”. Tradução livre).

Voltando, todavia, à análise de Nada Ortodoxa, trata-se de uma história tocante e angustiante de luta e de sobrevivência de uma mulher oprimida por uma cultura bela e milenar, porém, sufocante. Mas, acima de tudo, representa a luta de uma pessoa pelo direito de ser ela mesma. Afinal, o que nos define? O que está fora – como a tradição, o costume e ditames doutrinários – ou os sentimentos, emoções e pensamentos que construímos ou são construídos em nossa intimidade?

Foto: Divulgação (à esquerda: a escritora; à direita: a diretora)

Esty, com apenas 18 anos de idade, criada pela avó, filha de um pai alcóolatra e mãe ausente (supostamente por tê-la abandonado), morando num pedaço do Bairro de Williamsburg, distrito do Brooklyn, Nova Iorque, habitado quase que exclusivamente pela comunidade judio-hassídica ultra ortodoxa, decepciona-se profundamente com o casamento arranjado com Yanky Shapiro (Amit Rahav), que a trata como todas as mulheres daquela comunidade, sem direito a qualquer prazer (físico ou sexual) e destinada a procriar e cuidar da casa.

Foto: Divulgação

Sofrendo por ter abandonado suas aulas de música, com um doloroso vaginismo – ela nem sabia que tinha “dois orifícios” a compor sua vagina – e as constantes investidas da sogra e cunhada a respeito de não conseguir engravidar, Esty, claramente infeliz, finalmente fica prenhe, mas é surpreendida com uma atitude extremamente rude do marido, o que a faz fugir, com a roupa do corpo e poucos euros na carteira, para Berlim, onde sua mãe morava há anos, o que lhe conferia a cidadania alemã. Em seu encalço partem o inocente Yanky e o imprevisível e rebelde Moishe (Jeff Wilbusch).

Foto: Divulgação (esquerda: Jeffe Wilbush como Moishe; à direita: Amit Rahav como Yanky)

As dificuldades de Esty para dormir, alimentar-se, ambientar-se, sustentar-se estão presentes na trama, apesar de nem serem tão bem trabalhadas assim. Afinal, o que importa para o enredo não são as dificuldades exteriores contra as quais Esty tem que lutar; mas com seus próprios preconceitos internos, cristalizados por anos de visão unilateral e religiosa da vida.

Comer um sanduíche de presunto, nadar num lago com amigos, passar batom, ver duas mulheres, dois homens ou até mesmo um casal hétero se beijando apaixonadamente é um espetáculo chocante para Esty, ainda que já tivesse presenciado aquilo por algum veículo midiático ou en passant, sempre acompanhada de alguém ou da sua religião internalizada. Ver ao vivo e ao alcance das mãos, porém, faz toda diferença.

Um smartphone é visto como um Urim e Tumim e o Google à conta de um oráculo.

Foto: Divulgação (Esty “se despindo”)

O cabelo raspado da mulher após o casamento e consequente uso do turbante ou da peruca é uma mitzvá (ordenança) que deveria simbolizar sua devoção a seu dono – o marido – na forma de um voto de modéstia e de não sedução a nenhum outro homem que não o seu esposo; mas, para a mulher-fêmea representa, de fato, uma agressão (quiçá mutilação) de sua feminilidade, de sua personalidade e identidade mais profunda, quase similar a uma clitoridectomia. Shira Haas denota toda a dor do processo mutilatório com fartas doses de lágrimas, que precisavam ser mascaradas com um suposto sorriso de felicidade pelo matrimônio. Tristemente belo!

Qualquer coisa que se diga a mais pode estragar a experiência de acompanhar de perto a saga de Esty ao encontro de si mesma, de sua sexualidade, de seu talento e de que, apesar de todo o sofrimento que os movimentos religiosos podem causar em alguém, a espiritualidade que o constrói pode acabar sendo muito superior à dor provocada pelos seus profetas, sacerdotes e interlocutores; ou que este dissabor pode ser transubstanciado em sentimentos profundos e de grande emoção, capazes de serem transmitidos pela voz numa canção de letra indecifrável, mas de sentido totalmente inteligível.

Contando com uma interpretação absurdamente visceral da franzina Shira Haas (que parece uma menina de 12 anos!) e grupo de coadjuvantes absolutamente competentes e dedicados, Nada Ortodoxa – dirigido com extrema elegância e sensibilidade por Maria Schrader, falado em ídiche, hebraico, inglês e alemão – é uma excelente opção para quem deseja algo diferente e mais reflexivo neste período de quarentena forçada. A minissérie deixa algumas possibilidades para uma continuação que nos conte mais sobre o destino da protagonista, deixado bem em aberto.

Foto: Divulgação

Saber, por fim, que essa história tem mais ecos com a realidade do que possa supor nossa vã filosofia é mais assustador do que ver a história em si.

Em tempos de paleoconservadorismo e propostas reacionárias chega a ser incômodo pensar que ainda hoje, em pleno século XXI, tem tanta gente querendo usar da religião para oprimir novamente e cada vez a mulher, minorias ou qualquer tipo de diferença.

E que este modo de vida pode estar mais próximo de uma ampla realidade social a entrar em vigor do que possamos supor…

Foto: Divulgação

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Nota: 4,5 / 5 (excelente)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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