Connect with us

Críticas

O POÇO | Crítica do Neófito

Publicado

em

Quando eu estudava design na antiga FUMA (hoje Faculdade de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais), lembro da minha querida professora de História da Arte, Giselle Hissa, ensinando-nos sobre a arte sacra da Idade Média – conhecida por seus afrescos coloridos em janelas góticas de gigantescas igrejas, figuras bíblicas bidimensionais e etéreas etc. – que, ao contrário do que se pensa, era belíssima e de riqueza inquestionável, apenas tendo como tema central o elemento que caracterizava o período, ou seja, a .

Do mesmo modo, a arte clássica grega e romana expressava a sua ideia de uma harmonia cósmica em corpos perfeitamente simétricos e o Renascimento, com suas pinturas hiper-realistas, apresentava o homem como centro do universo, bem ao gosto de Nietzsche ao anunciar a “morte de Deus”!

Na atualidade, vivemos a chamada arte contemporânea, sucessora da pós-moderna. Ambos movimentos artísticos se caracterizam justamente por não possuírem um traço característico: pode-se tanto fazer uma pintura figurativa quanto uma exposição dadaísta! Claro que pode ser questionável, por exemplo, se um homem nu deitado no chão de uma sala seria arte e ainda por cima passível de ser veiculada para crianças; mas isso só reforça como a arte dos dias atuais é livre de limites e formatos.

Ainda assim, se a forma de expressão artística contemporânea goza de uma liberdade só limitada pela imaginação do artista, os temas normalmente presentes nas múltiplas artes continuam um tanto quanto vinculados aos tempos em que ela é, ao mesmo tempo, expressão e resultado.

No campo audiovisual – bastante inspirado pela Literatura contemporânea – pode-se observar que houve um tema bastante recorrente principalmente nos últimos 20 anos, que seria o futuro distópico ou destino escatológico da humanidade. Sem qualquer ordem, podemos nos lembrar de Matrix, Wall-E, Exterminador do Futuro, Contágio, Epidemia, Os 12 Macacos, Jogos Vorazes, Maze Runner, Divergente, Walking Dead, Invasão Zumbi, Guerra Mundial Z, Mad Max, Jogador Nº 1, Expresso do Amanhã, The Rover: A Caçada, Um Lugar Silencioso, Bird Box, The 100, entre tantos outros. Alguns filmes são mais leves otimistas – como Meu Namorado é um Zumbi, o citado Wall-E – enquanto outros são bastante pessimistas com relação ao destino do homem.

A partir dos anos 2010, o mundo começou a perceber o interessante fenômeno de ascensão ao poder de líderes pouco afinados com o ideal liberal-democrático e Estado de Bem Estar Social de forma ampla: Viktor Orbán na Hungria, Donald Trump nos EUA, Hugo Cháves e Nicolás Maduro na Venezuela, Santiago Abascal e seu Vox na Espanha, Matteo Salvini na Itália, Marine Le Pen na França e, aqui no Brasil – por mais que tal classificação possa gerar ojeriza em seus apoiadores – Jair Bolsonaro. Em maior ou menor grau, essas importantes figuras públicas defendem posturas que transitam entre um nacionalismo exacerbado, populismo de direita ou de esquerda, um liberalismo puramente econômico e um conservadorismo em termos de costume. Normal, também, a retórica antissocialista anacrônica, anti-imigratória, anti-imprensa, antiecológica e, em certos casos, antiartística.

O discurso polarizado e antirracional tomou conta das redes sociais. Enquanto uns defendem a meritocracia de forma absoluta – numa perspectiva em que sistemas de cotas são consideradas como uma espécie de socialismo sociocultural – outros atacam o Capitalismo e a desigualdade social como se fossem o inferno e os capitalistas (banqueiros, grandes empresários) à conta do próprio diabo.

A arte audiovisual – mesmo a comercial – não tardou retratar e refletir esse momento conturbado. Filmes como Você Não Estava Aqui, Coringa, Parasita, Jojo Rabbit, Bacurau, Aquarius são exemplos fáceis desse debate ideológico capturado em frames.

A mais recente e polêmica obra a tratar do assunto é, sem dúvida, o filme espanhol de Galder Gaztelu-Urrutia, O Poço, lançado pelo Netflix.

A premissa é até simples: num futuro (?) há uma instituição responsável por uma espécie de prisão – para onde vão criminosos condenados ou voluntários à busca de um não explicado certificado – formada por centenas de andares ocupados de dois em dois detentos, sendo que a comida para todos desce numa plataforma do primeiro e mais alto ao último e mais baixo nível. Assim, quem está em cima come primeiro e melhor até não sobrar nada para os que estão embaixo. Para complicar, cada dupla permanece apenas um mês em um determinado andar, sendo aleatoriamente mudado para outro, de forma que uma pessoa pode começar sua estadia no 7º andar e acordar no início do mês seguinte no 188º, no qual certamente não sobrará nenhuma comida e a pessoa terá que se virar para sobreviver, ou vice e versa!

Foto: Divulgação

O Poço é uma mistura de ficção científica com terror, lembrando um pouco Brazil: O Filme (Terry Gilliam, 1985), por tratar de um futuro bastante negativo, com ares fantásticos em alguns momentos.

A metáfora é um recurso presente em cada instante do filme – da premissa, ao enredo, passando pelos planos e acessórios – indispensável para o filme contar a angustiante história que narra.

Nesse sentido, O Poço lembra David Linch, famoso pelo uso de elipses narrativas beirando ao lúdico escatológico – mas que pode ser mais facilmente decifrado, caso se ache a chave de interpretação (vide Cidade dos Sonhos) – e também Christopher Nolan, conhecido por gostar de roteiros enigmáticos, muitas das vezes por puro estilismo.

O Poço, porém, usa da dubiedade e das insinuações como sua base narrativa. Dessa forma, tudo o que aparece e é dito tem alguma importância, ainda que permaneça inteligível para o espectador.

(pode ser que algumas coisas apresentadas aqui a partir de agora representem SPOILERS do filme, de modo que, se você não quiser saber nada mais específico da trama, peço que pule para os parágrafos finais)

Os números dos andares tem significado importante: o mais baixo nível é o 333 que, multiplicado pelos dois ocupantes de cada andar, resulta em 666, número que todo mundo sabe da relação com a besta apocalíptica do Novo Testamento.

O livro levado pelo personagem principal – Goreng (vivido com total entrega por Iván Massagué) – para seu período de seis meses na prisão é Dom Quixote; o visual do ator – bigode espesso, pequeno cavanhaque, cabelos desalinhados, corpo magro – e suas posturas – como quando empunha uma barra de ferro – também remetem ao famoso cavaleiro andante de Cervantes; de modo que fica claro que a luta que Goreng resolve assumir é quixotesca, isto é, uma luta ilusória contra moinhos de vento.

Foto: Divulgação

Os andares superiores – que podem simbolizar países ou pessoas muitas ricas– se fartando às custas dos inferiores (países em desenvolvimento, pobres do mundo) é uma clara referência à desigualdade social e de oportunidades. O canibalismo pode aludir ao capitalismo selvagem, em que um precisa comer o outro (no sentido de explorar ou de se aproveitar de) para sobreviver, num mundo com recursos cada vez mais escassos.

O primeiro andar – ‘zero’, onde os alimentos são preparados com exigência de um grande chef de cozinha – pode representar a natureza injusta na distribuição de oportunidades e talentos ou o próprio Deus.

Mas há também críticas ao ideal sociocomunista: a luz vermelha é sempre acendida à noite e antes da mudança de andar dos presos, o que pode significar a distribuição igualitária de oportunidades; o comentário sobre a alimentação regrada a unicamente o necessário ser a condição para que todos os andares tenham alimento também alude à utopia comunista. O convencimento racional, nesse caso – como mostrado no filme – não surte nenhum efeito; apenas a ameaça coercitiva de quem está acima gera algum resultado prático e, ainda assim, limitado em seu alcance.

Foto: Divulgação

A ineficácia de um livro diante de uma faca ou espada denota como a força ainda é uma linguagem mais eficaz do que as ideias, crenças, valores éticos e superiores (haveria aí uma referência ao Caim bíblico?).

A feroz Miharu (Alexandra Masangkay) é uma espécie de Dulcinéia (a musa de Dom Quixote) e, ao mesmo tempo, uma Virgem Maria ao contrário: mãe sem pai de um filho perdido no meio daquele inferno, transita em meio à comida levando morte ao invés de vida aos ocupantes daquele lugar. As referências religiosas também se estendem ao ato de comer o corpo um do outro, o que faria com que estivem unidos antropofagicamente. As palavras usadas para descrever esse processo são as mesmas da comunhão católica.

Foto: Divulgação

Por fim, há o Sancho Pança de Goreng-Quixote, o religioso negro Baharat (Emilio Buale Coka) – cujo nome parece um acróstico para “barata”, lembrando Franz Kafka – e uma criança-messias (a qual remete ao poema Guardador de Rebanhos, de Alberto Caiero / Fernando Pessoa) e que, em tese, pode redimir todo o sistema.

Foto: Divulgação

(FIM DOS SPOILERS)

O comentado enigmático final do filme é aberto e cheio de possíveis interpretações, como o próprio diretor ressaltou em entrevistas.

A execução do filme é impecável em termos de efeitos especiais e visuais, cenografia, figurino e maquiagem. As cenas de violência gráfica são bastante convincentes e sujas.

A interpretação de Zorion Eguileor tornam seu personagem, Trimagasi, realmente assustador, enquanto Antonia San Juan transmite toda a surpresa indignada da ex-funcionária da Administração, Imoguiri, que também vai parar voluntariamente naquele lugar por uma certificação (que pode simbolizar a redenção ou penitência daqueles personagens).

Foto: Divulgação

O roteiro consegue angustiar o espectador e a direção segura mantém atores e história em rédeas curtas.

Mesmo assim, há alguma coisa que não funciona muito bem no conjunto, mas pode ser pela estética crua na forma e enigmática no conteúdo que cause esse incômodo.

Ao terminar o filme, fica-se com uma sensação estranha e difusa na mente e coração. Conseguimos entender a mensagem num nível inconsciente e sutil, mas não totalmente a ponto de ser possível traduzir em palavras adequadas.

Talvez, com isso, o filme consiga realizar com a gente exatamente o que uma boa obra de arte – principalmente a contemporânea – consegue: provocar sentimentos e sensações de indefinível lirismo dentro de nós.

Foto: Divulgação

_______________________________________________________________________________________________________________________________________

Nota: 3,5 / 5 (muito bom)

_______________________________________________________________________________________________________________________________________

SIGA-NOS nas redes sociais:

FACEBOOK: facebook.com/nerdtripoficial

TWITTER: https://twitter.com/Nerdtripoficia3

INSTAGRAM: https://www.instagram.com/nerdtripoficial/

VISITE NOSSO SITE: www.nerdtrip.com.br


Leia Mais:

LA CASA DE PAPEL S04 | Crítica do Neófito

FREUD | Crítica (tardia) do Neófito

STAR TREK: PICARD | Análise crítica do episódio duplo de final de temporada

ALTERED CARBON: NOVA CAPA | Crítica do Neófito

DESVENDANDO OS SEGREDOS DA FORÇA | It’s a trap! Mon Cala, mon calamaris e quarrens

Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

Comente aqui!

Mais lidos da semana