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Críticas

BOCA A BOCA S01 | Crítica do Neófito

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Ainda surge vívida, na mente deste colunista que lhes escreve, a lembrança dos angustiantes primeiros anos de eclosão da AIDS, nos quais se cogitava seriamente do perigo de se pegar a doença – na época, 100% letal! – não apenas pelo contato sanguíneo ou relação sexual, mas também através de um simples beijo na boca.

Era terrível imaginar que este grande momento para a adolescência da minha época – o beijo – pudesse estar verdadeiramente ameaçado, e isso em plena mania nacional de oferecer uma bala Ice Kiss – ou o papelzinho dela cuidadosamente amarrado – como forma de pedir beijo a alguém!

 Foto: Divulgação

Décadas se passaram desde então.

Quando assistimos ao filme Epidemia, de 1995, estrelado por Dustin Hoffman, Rene Russo, Morgan Freeman e Kevin Spacey, apesar de a história se referir levemente ao temível surto do vírus Ebola ocorrido no Congo também naquele ano, parecia que aquilo era tão somente fruto das mentes criativas e mirabolantes dos roteiristas hollywoodianos.

Foto: Divulgação

Após as pandemias de Dengue (1995-dias atuais, Brasil e África), da SARS (2002-2003, China) e da MERS (2012, Arábia), o filme Contágio, de 2011 – dirigido pelo versátil Steven Soderbergh e elenco estelar encabeçado por Matt Damon – revelou-se uma obra cinematográfica mais assustadora, que, somada a parte do discurso atualmente ‘viralizado’ que Barack Obama proferiu em 2014, chega a ser quase profética.

Foto: Divulgação

O vírus Sars Cov-2, ou simplesmente Coronavírus, agente causador da Covid-19, surgiu de repente e, de forma avassaladora, mudou a rotina do mundo inteiro. Mesmo não sendo objetivamente letal – a porcentagem de infectados que chegam a óbito gira em torno de 2% – sua rapidíssima transmissão tem o condão de tornar esses 2% realmente alarmantes, afinal, 2% de 100 milhões representam 2 milhões de pessoas doentes e morrendo ao mesmo tempo, sem que qualquer país do mundo possua infraestrutura hospitalar capaz de atender a tamanha demanda de uma só vez.

As formas de combate ao Coronavírus têm variado de país para país e até mesmo de localidades dentro do próprio país, destacando-se a Nova Zelândia, a Tailândia, a Alemanha (“coincidentemente” governados por mulheres), Vietnã, entre outros, como as nações que melhor têm lidado com o vírus; enquanto EUA e Brasil despontam do outro lado da régua, como os piores países na luta contra a Covid-19, contando com dezenas de milhares de mortos em suas estatísticas.

Não há como não adentrar na seara política ao analisar esse cenário. Brasil e EUA, sem qualquer julgamento valorativo, claramente se alinham ao contemporâneo movimento conservador, de direita extrema e ultraliberal, que supostamente surgiu em resposta à onda progressista que vigeu em grande parte do mundo nas últimas duas décadas, e cujas pautas perpassavam pela igualdade de gênero e de raça e, entre outras coisas, também por uma mudança no pensamento com relação às drogas, uma vez que a política exclusivamente combativa não parece obter resultados satisfatórios, algo que foi muito bem retratado no excelente filme Sicario: Terra de Ninguém, dirigido por Denis Villeneuve, em 2015, com a visceral interpretação de Benicio Del Toro.

Foto: Divulgação

Toda a conversa acima serve para introduzir os temas abordados na corajosa série brasileira produzida pela Netflix, chamada de Boca a Boca, cuja trama – incrivelmente concebida há dois anos! – aborda o surgimento, numa pequena cidade fictícia do interior de Goiás chamada Progresso, de uma doença epidêmica e mortal transmitida pela troca de fluidos bucais, ou seja, pelo beijo. O primeiro sintoma da misteriosa doença é uma alucinação do infectado, seguida pelo aparecimento de uma mancha roxo-enegrecida em seus lábios, que se irradia como finas rachaduras pelo queixo até o colo, sendo fosforescentes e de cor neon (lilás, azul e avermelhado). Na evolução da enfermidade, as pessoas passam a perder a sensibilidade física e emocional e os olhos ficam opacos, até advir a morte.

 Foto: Divulgação

O pior? A doença parece afetar exclusivamente os jovens, todos estudantes da escola-modelo da cidade, dirigida com mãos-de-ferro pela diretora Guiomar (Denise Fraga), e tendo se espalhado a partir de uma rave realizada nas imediações da marginalizada tribo/seita da localidade, situada em plena floresta. A primeira vítima é a aparentemente alto-astral Bel (Luana Nastas), que, além de tomar uma droga alucinógena fornecida na rave pelos membros da tal seita, participou de um beijo triplo formado por ela, sua melhor amiga (e paixão secreta) Fran (a novata Iza Moreira) e pelo homoafetivo Chico (Michel Joelsas, esplêndido). Esses dois últimos, mais o personagem Alex (Caio Horowicz, convincente), formam o trio de protagonistas, que vai investigar a epidemia e dar andamento à trama.

Foto: Divulgação (Denise Fraga e sua ótima concepção da diretora rígida da escola-modelo da cidade fictícia de Progresso. Observe o contraste entre as cores azul e lilás)

Essa descrição não se constitui em spoiler, afinal, o trailer do programa já mostra tudo isso.

Foto: Divulgação (o trio de protagonistas, da esquerda para a direita: Fran, Alex e Chico, respectivamente interpretados por Iza Moreira, Caio Horowicz e Michel Joelsas)

Mas, a partir dessa premissa aparentemente simples e batida – que em certa medida até lembra os filmes de zumbis – o criador e diretor Esmir Filho (do viral Tapa na Pantera), juntamente com a diretora Juliana Rojas, compõe uma interessante trama metafórica acerca do verdadeiro conceito de liberdade, em termos de ser aquilo que fornece vida (ou sentido) às pessoas.

Foto: Divulgação (Esmir Filho e Juliana Rojas)

Trata-se, portanto, de um retrato da nossa época atual, circunscrito ao microcosmo da cidade, em que seus membros notáveis (prefeito, diretora, pastor, mulher do maior latifundiário local etc.) fazem academia juntos, no mesmo horário, enquanto discutem e definem os rumos da vida de seus jovens filhos (e do restante da população), todos tendo seus segredos sórdidos (o que me remeteu à antológica série Twin Peaks).

Foto: Divulgação

A obra de Esmir Filho, apesar de lembrar muito os primeiros anos da AIDS e “coincidentemente” retratar o momento pandêmico atual, quer, em verdade, claramente discutir o progressismo (não é à toa nome da cidade – Progresso – e da crítica feita a certa altura pelos alunos, pintando cartazes para o município com o nome de “Retrocesso”), com inclinação para a questão da psicodelia. Atualmente, é pouco controverso que a maconha, por exemplo, pode ser útil em termos medicinais, encontrando liberação controlada no Uruguai e em vários estados dos EUA (vide o livro “Como Mudar a Sua Mente”, de Michael Pollan, que trata de maneira séria o assunto). Em contrapartida, é evidente os perigos que a dependência a narcóticos pode causar à saúde e à vida dos seus usuários (vide as cracolândias presentes em quase todas as metrópoles do país). A própria estética setentista, repleta de efeitos psicodélicos e preponderantes tons neons de lilás e laranja, bem ao estilo do subestimado e ótimo filme de Francis Ford Coppola, Vidas Sem Rumo, de 1983 – responsável, na época, pelo lançamento de vários jovens atores, que mais tarde viriam a ser tornar astros hollywoodianos (como Tom Cruise, Patrick Swayze, Matt Dillon, Ralph Macchio e outros) – reforçam a temática das drogas e do direito de usufruir de sua sexualidade e liberdade.

Mas, ao contrário de um Seth Rogen, defensor explícito do uso recreativo das drogas, Esmir e Rojas tocam no assunto de forma sutil, quase que em segundo plano, colocando em destaque a ideia e um verdadeiro liberalismo e como ele é incompatível com posturas mais conservadoras. Desse modo, a homossexualidade é trabalhada de forma natural, sexual, mas ao mesmo tempo terna e amorosa, sem – claro! – deixar de fora o grave problema da homofobia e do estigma social e familiar para quem ousa ser diferente.

Foto: Divulgação

A série tem um ritmo próprio, bem brasileiro, conta com excelente fotografia e interpretações muito boas, ainda que vários personagens sejam representações arquetípicas clássicas. Bruno Garcia – camaleônico – por exemplo, está ótimo como Doni Nero, típico empresário rural inescrupuloso, vaidoso e ganancioso, pai do idealista Alex (já mencionado). E, se temos um representante do agronegócio, temos também o exemplar da bancada da Bíblia, Tomás (interpretado por Flávio Tolezani), que também é pai do garoto Quim (Kevin Vechiatto, o Cebolinha de Mônica: Laços) e do já mencionado Chico, que é o verdadeiro centro de toda a narrativa, não apenas pelo interessantíssimo personagem, mas também pela interpretação irrepreensível de Joelsas.

Foto: Divulgação

O enredo é bem desenvolvido e a história faz com que realmente temamos pelo destino dos personagens, à medida que a doença se espalha.

As falhas ficam em algumas poucas falhas do roteiro, pela indefinição de um “tom” mais definido (que emula Dark, Stranger Things e várias outras obras, indo da comédia para quase o terror), na subtrama que envereda pela ficção científica e criaturas geneticamente modificadas e nos clichês habituais. Mas, mesmo com isso (ou por causa disso), Boca a Boca se diferencia, por ser uma série que consegue sutilmente criticar o cenário político-social ora vigente, dialogar com o momento pandêmico atual, sem deixar de se apresentar como entretenimento de primeira, possuidora de uma trama enxuta e instigante, bem concluída e abrindo bons ganchos para uma próxima e bem-vinda temporada.

Acredito, entretanto, que muitas pessoas podem deixar de ver o programa por considerar que ele esteja fazendo apologia às drogas ou promovendo glamourização da homoafetividade, principalmente entre os jovens (tema central das discussões políticas nas últimas eleições nacionais). Mas, acredito que Boca a Boca trate mais de ser jovem e livre do que novo e inconsequente.

Ótima pedida para quem gosta de privilegiar a produção nacional, principalmente a que vá por caminhos diferentes, graças ao investimento da Netflix.

E podem beijar na boca à vontade, pois, o problema não está no entrelaçar de línguas, mas no que isto pode estar escondendo!

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Nota: 3,5 / 5 (muito bom)

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Sou um quarentão apaixonado pela cultura pop em geral. Adoro quadrinhos, filmes, séries, bons livros e música de qualidade. Pai de um lindo casal de filhos e ainda encantado por minha esposa, com quem já vivo há 19 bons anos, trabalho como Oficial de Justiça do TJMG, num país ainda repleto de injustiças. E creio na educação e na cultura como "salvação" para nossa sociedade!!

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